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O hard roça do Judas

Em 2009, com o ótimo grupo Numismata, Adalberto Rabelo Filho foi entrevistado aqui na Movin’ Up, época de lançamento do álbum “Chorume”. Quase 04 anos se passaram e, nesse tempo, Adalberto veio pra Brasília e embarcou em um novo projeto que eu pude acompanhar desde o nascimento: o Judas.

Maturado durante esse tempo, o grupo passou por algumas formações e fez shows esporádicos em Brasília, mostrando a sua mistura de viola caipira, folk, Clube da Esquina, literatura latino-americana (e brasileira, clara), rock “clássico” – por assim dizer – e artistas da estirpe de Tom Waits, Nick Cave e linhagem semelhante, que eles resolveram definir como “hard roça”.

Em julho, a banda se apresentou para um bom público no Clube do Choro, tradicional casa de shows da capital federal. Finalizando a gravação do primeiro disco, Adalberto contou pra Movin’ Up que história toda é essa do Judas, o conceito do grupo, a sonoridade e onde eles querem chegar. Sem dúvida uma formação que encontra pouquíssimos pares na música brasileira atual, especialmente a independente.

– Depois do Numismata e das suas colaborações com o Vespas Mandarinas e outras praias, muita gente pode “estranhar” a guinada musical que o Judas representa. De onde vem o seu interesse pela música caipira e a vontade de compor no estilo?

Adalberto Rabelo Filho – Acho que não, o Judas, como o Numismata, é uma proposta de música brasileira pop. É mais um alargamento de fronteiras, não uma guinada, entende?

Acho que muitas coisas influenciaram o foco atual, mas de uma maneira geral ele foi despertado pela minha mudança pra Brasília.
Aqui o cerrado deve involuntariamente ter influenciado essa identificação até familiar que tenho com as coisas do sertão. Isso, junto com aquela sensação típica de músicas como Asa Branca, do lance do “exílio”, do imigrante longe da terra natal, aquele banzo todo, também ajudou a ampliar essa aproximação maior com o gênero. Rolou uma epifania.

Eu sempre fui um super fã do Dylan e dos compositores que também são ótimos letristas todos, como Lou Reed, Tom Waits, Leonard Cohen, Nick Cave, Paul Simon, sempre fui fã do Raul também e fui me interessando por essa coisa que eles fazem muito bem que é juntar as ideias mais profundas numa letra que seja facilmente inteligível.

Aqui em Brasília tem muita apresentação de manifestações de cultura popular, é uma cidade muito rica nesse sentido e, entre tantas coisas, acabei me identificando com a viola caipira. Talvez porque eu seja paulista e a música caipira é eminentemente paulista, talvez a distância tenha despertado isso aí, sei lá.

Quando o Fábio, violeiro, entrou pra banda eu tive oportunidade de aprender ainda mais desse universo e vi que ele dialoga diretamente com o Blues e com o Folk. Na verdade, com um monte de outras linguagens musicais também, mas como o Blues mais diretamente. Muitas lendas em comum, negócio de superstição, de venda de alma pro diabo, de falar das agruras do dia-a-dia, das tristezas como forma de catarse, de expiação de culpa, até de fuga de uma realidade dura. Muitas músicas caipiras são cruéis, falam de morte, tem lição de moral. É um material muito rico do qual se partir.

O Grande Sertão foi uma grande ajuda no sentido de como fazer essa abordagem de uma maneira sincera e verdadeira. Quer dizer, eu não precisava ser um peão ou algo assim pra falar com propriedade das coisas da alma, que são universais. Assim como não preciso morar na Sibéria pra entender Dostoieviski.

Com a entrada do Kadu, esse laço com o Blues ficou ainda mais evidente.

O som do Judas batizamos de Hard Roça. É um trocadilho para que as pessoas lembrem fácil da gente. O que está implícito nele é que é o caipira tocado “hard” e não o rock tocado com estetizações de clichês caipiras. O que é legal, o que é diferente, é que não é rock com pitadas de outras coisas “de raiz”. É a “raiz” que é o âmago do negócio. A gente toca pagode de viola, chamamé, toada, fado, guarânia, o que acontece é que a gente não é do campo, a gente se identifica, mas não é do campo, então a gente acaba “traduzindo” certas coisas pra linguagem com a qual a gente cresceu. Não é um estilo novo, muita gente fez abordagens parecidas, inclusive o próprio Clube da Esquina. A diferença são as influências que determinam o som, claro. A gente não soa exatamente igual a ninguém, tá tudo lá misturado.
Normal, né, é assim que tem que ser, não é museu.

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– Como exatamente as alegadas influências de Tom Waits, Leonard Cohen, Clube da Esquina e outros funcionam nessa panela?

ARF – Acho que na preocupação com as letras, não só no sentido do apuro, mas também nos assuntos abordados e a maneira como eles são abordados – referências literárias, diversidade de assuntos, visão de mundo, uma certa visceralidade, um certo sarcasmo, um certo lirismo. Um pouco a abordagem do underdog, né, que é o arquétipo que o Judas representa, de certa maneira. A gente não tem medo de falar de assuntos complicados, como morte, perda, etc. O Clube da Esquina também apresenta parentescos na sonoridade, já que eles usaram muita viola e flertaram muito com os ritmos característicos da música do interior do país, principalmente o Tavinho Moura, mas o Milton e os outros também. Acho que nossa abordagem é similar a deles, no sentido de que passa pelo sertão, mas tem o viés do intelectual. Judas chama Judas pelo Bob Dylan e pelo Raul Seixas, em última instância.

– As letras tem uma importância grande no som do Judas, assim como nos seus outros trabalhos, você destacaria alguma letra em especial para exemplificar essa mistura de Jorge Luís Borges, Juan Rulfo, García Marquez, Guimarães Rosa, etc? Como transpor a complexidade desses autores para o formato música?

ARF – Tem duas músicas que exemplificam isso bem. Uma chama Nonada, que é a palavra que abre o Grande Sertão (Travessia, do Milton e Fernando Brant, é a palavra que fecha).

É uma letra metafísica, que fala, usando metáforas simples vinculadas ao dia-a-dia de um vaqueiro, da impossibilidade de se domar a vida e controlar o destino. Acho legal que se valha desse artifício para que as pessoas possam compreender o que está sendo dito, mas buscamos fazer de uma maneira rica, sem subestimar a inteligência de ninguém. É assim que nasceu porque não sou do campo e minha identificação com esse universo se traduz dessa maneira.

Também tem aquele peso do lance sertanejo nordestino muito comum nas canções de exôdo, num trecho em que o personagem dessa canção contesta o peso de ser imagem e semelhança de Deus ( o que é meio Nick Cave). A outra, em que a presença desses caras fica ainda mais clara, é De Comala a Macondo. Comala é a cidade dos mortos do romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo, clássico do realismo fantástico mexicano. Macondo é a cidade de vários dos romances do García Marquez, inclusive Cem Anos de Solidão. É uma piada, tipo, Do Nada ao Lugar Nenhum, sabe? A letra vincula esse universo do realismo fantástico latino com a imagética nordestina. São linguagens com muitas semelhanças.

Pega, por exemplo, Saramandaia. Ou as histórias do Zé Limeira. É uma letra meio cinematógrafica, no sentido que vai trabalhando com a construção de imagens numa narrativa não linear, mas que faz sentido, à maneira de um Bandido da Luz Vermelha ou de Terra em Transe, digamos.

– A banda já toca desde 2009 e agora está gravando o primeiro disco. Como você observa a evolução até hoje e como esse tempo de maturação influenciou no Judas que vemos no palco em 2013?

Muita coisa mudou na formação da banda e com isso muita coisa esteticamente também vai mudando, embora a ideia permaneça a mesma, que é a construção desse som que batizamos de Hard Roça. Acho que estamos mais tranquilos no palco hoje em dia e a entrada do Kadu ajudou a criar uma maior unidade no som e deixa-lo mais universal, que sempre foi nossa ideia, a de fazer uma coisa que tivesse apelo pop, no sentido “Rolling Stones” de pop, claro.

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– Qual a previsão de lançamento do disco, as expectativas, qual formação que irá gravar e a estratégia de lançamento?

A formação que grava o disco, com certeza, é:

Adalberto Rabelo Filho – voz e violão
Kadu Abecassis – guitarra e baixo
Fábio Miranda – violas caipiras
Hélio Miranda – teclados
Augusto Coaracy – bateria
Luiz Miranda – baixo
Fernando Rodrigues – baixo
Lucas Muniz – sanfona e clarone

Antes de qualquer coisa, é uma galera que adoro. Somos amigos, antes de qualquer coisa. Com todo mundo que passou pelo Judas desenvolveu-se esse negócio meio fraternal, essa sensação que essas pessoas todas, de alguma maneira ou de outra, salvaram a minha vida.
Tem algumas participações especiais que a gente tá armando, mas ainda não dá pra falar com certeza.

Estratégia de lançamento ainda não sei, tô tentando negociar com alguns selos e gravadoras, acho que mais pra frente dá pra saber melhor, mas acho relevante que o disco tenha boa distribuição, quero que toque na rádio também, se tudo der certo. Nada como a rádio pra chegar nas pessoas, mesmo nos dias de hoje.

Mas querer é uma coisa. Rolar é outra. E eu acho difícil falar de expectativas, sendo meio macaco velho. Não dá pra ficar muito sonhando com nada, seria meio ingênuo. O que eu sei é que, modéstia à parte, é um trabalho relevante e singular, uma proposta musical diferente com letras que, no mínimo, fogem do lugar comum de grande parte das letras atuais, além de tudo muito assépticas.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Destaques Entrevistas