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Olavo Rocha, do Lestics: “a política cultural tende a ser desastrosa”

Uma das bandas mais resilientes e produtivas do independente brasileiro, o Lestics, de São Paulo, já tem nas costas impressionantes 8 discos de estúdio em pouco mais de 10 anos. Liderados pelo vocalista Olavo Rocha, a banda colocou na praça obras dissonantes que compartilham um universo bem próprio, da música às letras, passando pela abordagem – o último disco, o bom “Breu”, de 2018, vem encartado com um zine com HQs, ilustrações, gravuras e textos baseados em suas letras.

Um pouco de ousadia e pretensão faz bem. No release, afirmam que “Breu” pinta paisagens e retratos sombrios, que refletem esse nosso momento fraturado, incerto, paralisante. Não há rendição, no entanto. É preciso encontrar motivos e meios pra seguir adiante”. O tom não poderia ser mais adequado para o Brasil 2018/2019, o que já vivemos e o que vem por aí, neste estado de exceção permanente de um governo deliberadamente fascista controlado por militares que conseguiram se eleger “democraticamente” por fraudes eleitorais em série, lavagem de dinheiro, candidatos laranjas e uso massivo de notícias falsas.

Ah: de brinde, este é um governo que também trata o artista e arte como inimigos, que se utiliza de premissas falaciosas para perseguir quem faz qualquer coisa que se oponha a ele e que quer deliberadamente acabar com a Lei Rouanet, que comprovadamente dá um retorno infinitamente maior do que o seu “custo” propriamente dito e também esvaziar o Sistema S. É preciso sufocar o artista de todas as formas que estiverem ao seu alcance, porque esse bicho atrevido incomoda o poder, assim como o jornalismo sério incomoda.

Assim, estas 05 perguntas que Olavo Rocha respondeu dizem bastante sobre a arte e o “estado das coisas”. Brutalmente honesto, como tem que ser, é uma estocada no rim da mediocridade reinante.

Movin’ Up – Diante do quadro geral de temperatura e pressão, como você espera que será fazer arte no Brasil de 2019? Tudo muda para continuar como está ou não?

Sem querer parecer otimista, espero o caos. Digo isso porque um ambiente caótico pode até ser legal pro pensamento artístico, pra produção artística. Mas a “política cultural” que se anuncia tende a ser caótica de um jeito desastroso. Principalmente pros projetos que estão nas periferias, pra formação de público, pra arte mais engajada e menos mainstream. Ou seja, pra quem mais precisa e faz mais jus ao apoio do Estado.

E fora desse círculo não deve ficar muito melhor. Boa parte do pessoal que trabalha com cultura vem perdendo status e agora deve perder fontes de financiamento também (abrindo um parênteses sobre esse lance de status: a guerra ideológico-eleitoral botou pilha na ideia do artista vagabundo, que mama nas tetas do Estado; o próximo passo pode ser um rebaixamento de “vagabundo” pra “subversivo”; a conferir).

Enfim, a arte e a cultura, que nunca foram prioridade no país, e que muito raramente foram entendidas como ferramentas de inclusão, devem ser ainda mais sufocadas. Quem se ferra mais? Quem tem menos, como ensina a Bíblia. Gostaria de estar errado, mas acho que é por aí. Não vai mudar pra continuar como está, vai mudar pra pior.

Movin’ Up – Cada disco tem uma história. Esse, pelas músicas, pelo zine, enfim, por toda a maneira como ele é apresentado e o que busca passar, qual é a história que ele conta sobre a sua vida atual e a banda?

Fui dar uma ouvida no disco pra responder a pergunta (fazia um tempinho que não ouvia o ‘Breu’ inteiro). E achei que o discurso gira, essencialmente, em torno da procura de motivos pra prosseguir. Talvez faça sentido.

O disco abre com “desapegar do chão depois da surra” e fecha com “a preguiça promete à vergonha que o dia seguinte vai ser diferente”. No meio disso tem “o batom, a gravata, o crachá do serviço / é preciso que exista algo mais do que isso”.

Mas talvez o ponto central sejam os versos “trazer no bolso a carta suicida / mil vezes reescrita e revisada / adormecida como uma granada / salvo-conduto pra cruzar a vida”. Leio isso da seguinte maneira: se os motivos para desistir mudam continuamente, a decisão fatal não pode ser tomada. É imperativo continuar.

Movin’ Up – Nessa necessidade de rótulos, passamos por uma geração e uma fase (na música, no público, nos interesses que movem “a cena”), na minha visão, cada dia mais cínica e menos espontânea. Concorda com isso?

O que eu sei: os rótulos nunca foram tão valorizados como agora, com a hegemonia dos algoritmos e métricas da vida. O que eu acho: a cena sacou isso e está reagindo com o pragmatismo habitual (e não necessariamente com cinismo, o que poderia resultar até mais interessante). É a tag capturando o zeitgeist e vice-versa.

Algum problema nisso? Sei lá. O que eu acho: pragmatismo e espontaneidade nem sempre andam juntos, mas isso não é um problema a princípio – em arte tem um monte de coisa pragmática muito foda e um monte de coisa espontânea muito zoada (o contrário é mais frequente, acho eu, mas você entendeu meu ponto).

Daria pra fazer uma crítica do fenômeno se fosse possível demonstrar que a produção tá ficando mais homogênea, mas não sei se isso está de fato acontecendo. * Sei que tem estudos que apontam um consumo de música mais homogêneo, mas aí tem que ir atrás da informação, o que não fiz porque não tenho a paciência necessária. *

Enfim, às vezes eu sinto que está tudo muito parecido, mas essa impressão passa logo que me aventuro (acontece o tempo todo) pra além dos tentáculos do hype.

Movin’ Up – Eu não acho que a arte tem obrigação de ser coisa alguma (necessariamente “política” ou “profunda” ou etc). Mas ao mesmo tempo me parece que vivemos um estado de letargia e covardia maior que o normal, em que ficamos trancafiados nas nossas bolhas (pessoais, musicais, etc), inevitáveis. Existe vida no estado de exceção em que vivemos e existe vida à margem da porra toda?

Acho que a vida tá sufocada, mas a arte não. Não vejo a arte acovardada, nem vejo a produção atual como apartada do seu tempo. São muitas as vozes se levantando e trazendo à luz manifestações absolutamente pertinentes ao momento atual. Pode ser que isso esteja acontecendo principalmente “à margem da porra toda” (penso na arte “não-comercial”), mas tem muita coisa no radar da cultura de massa que segue esse mesmo movimento.

E no fundo, é isso que se espera da arte contemporânea, né? Porque é o que tá estabelecido no imaginário social (o artista inconformado e contestador). Então – como a gente já falou – tem inclusive um tanto de pragmatismo e/ou automatismo nesse posicionamento. Se o resultado vai ser bem-sucedido (fresco, vivo, contundente) ou não, são outros quinhentos. Nem é essa a discussão aqui. O fato é que a arte ainda carrega essa bandeirinha da contestação.

Movin’ Up – Rousseau, em 1761 (!) escreveu assim: “a vida metropolitana é como uma permanente colisão de grupos e conluios, um contínuo fluxo e refluxo de opiniões conflitivas. Todos se colocam freqüentemente em contradição consigo mesmos e tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo (…) eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena.” Essa passagem teria algo a ver com a música que você produz?

Definitivamente sim. É um discurso (eu nunca li Rousseau, a propósito) que vai ecoar em autores mais modernos que me influenciam muito. De todo modo, como diz a letra de “Gênio”, “Shakespeare e os gregos já disseram tudo antes”. O que a gente faz é selecionar os trechos que vamos plagiar com menos talento.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Entrevistas