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Bacurau: recorte irregular de obsessões tipo exportação

(Aviso: o texto está repleto de spoilers e não é indicado para quem ainda não viu o filme)

Kleber Mendonça Filho atingiu aquele status em cada obra sua é recebia como “filme-evento”. Sempre escorado, claro, por uma ótima estratégia de marketing e presença prévia em festivais europeus que ele conhece muito bem (sobretudo Cannes, onde passou décadas como crítico).

Nada disso seria problema se o filme sustentasse o oba-oba que parece nublar a capacidade crítica da maioria dos espectadores, ansiosos e sedentos por confirmar a expectativa e se juntar à celebração coletiva, visível durante a própria exibição, quando gritos, aplausos e urros de êxtase se empilham em cada botão que Kleber quer acionar na plateia – e consegue.

Não é a expectativa, no entanto, que atrapalha “Bacurau”. Mas o amontoado de obsessões cinematográficas do diretor despejadas na tela sem um desenvolvimento razoável, sem profundidade, com todos os personagens, as ações e o enredo servindo meramente para criar o efeito desejado.

No fundo, “Bacurau” é consequência direta dos temas dos dois longas anteriores, o mediano “Aquarius” e o bom “O Som Ao Redor” (leia as críticas que fiz na época nos links citados). A especulação imobiliária urbana e a classe média decadente aqui ganham contornos de conflitos fundiários e por recursos naturais – a água – no interior do Brasil, turbinado pela estética faroeste-futurista-blockbuster com um orçamento maior (para os padrões do BR).

Cabe um breve parêntese: muito tempo atrás, quando Kleber era sobretudo um crítico de cinema e diretor de alguns curtas, a comunidade no Orkut do seu site, o CinemaScopio, era frequentada por poucas pessoas. Menos de 1.000, se me lembro bem. E ali tinha-se um bom nível de discussão sobre cinema com a participação ativa de KMF.

Cito isso porque esses anos de debate cinematográfico no fórum permitiram identificar claramente as obsessões de Kleber: John Carpenter (em Bacurau, especialmente “Assalto à 13ª DP”), Quentin Tarantino, Sam Peckinpah (“The Wild Bunch” e vários outros), George Miller, Kurosawa, Clint Eastwood, Leone, De Palma e cia ltda.

Bom, não há nenhum problema em ter influências e retrabalhar isso do seu jeito. Especialmente quando se trata de inegavelmente ótimos diretores. O problema acontece, como dito, quando essas influências resultam em um filme mal desenvolvido e feito para ativar os gatilhos do público que se delicia com a vingança redentora esperada.

KMF e Juliano Dornelles pegam esses diretores e adicionam um pouco de Glauber Rocha aqui, um tico de “Os Fuzis” de Ruy Guerra acolá, a mitologia de Lampião, de Canudos e de resistência no sertão ali e embalam tudo isso para um filme tipo exportação que muitas vezes soa como um blockbuster genérico, especialmente no seu segundo ato, que é quando ele realmente cai.

A trupe de mercenários gringos enviados para dizimar a população local de Bacurau em conluio com o prefeito caricato e corrupto (como milhares Brasil afora, claro) e, subentende-se, financiados por grana pesada de quem tem interesse nas terras e na água da região, é, novamente, caricata, clichê e ridícula.

Muitos hão de dizer que o objetivo é justamente esse. Sem dúvida. O que não exime de ser descartável e questionável, como o tal “jogo” sobre quem “ganha mais pontos” matando “mulher, homem ou criança” para um resultado final que resulta em bonificações. O patético da personagem que o tempo todo “sente tesão” em matar e acaba propondo uma transa no meio do mato depois de metralhar um casal, por exemplo. É insuportavelmente ridículo. Assim como a criança morta “confundida” com um adolescente “supostamente” armado.

O enredo busca o tempo inteiro essas associações com o Brasil da barbárie cotidiana e do gringo imbecil apenas para gerar ódio e desprezo no espectador, certos de que a revanche virá, com a garantia de que a “redenção” pela violência dobrada acontecerá muito em breve. De que aquela população heterogênea de uma cidade que “sumiu do mapa” é muito menos inofensiva do que parece.

E quando ela vem os urros de júbilo na plateia confirmam que os diretores conseguiram exatamente o efeito desejado.

Se a trupe de mercenários caricatos liderados por Michael é de dar dó de tão clichê (e as cenas sobre “nazismo” e o diálogo sobre “violência doméstica” poderiam ser facilmente excluídos, assim como boa parte das tentativas de dar “dimensão” a eles), as figuras-chave de Bacurau também não tem melhor sorte.

O que nos diz, afinal, as personagens Teresa, Acácio, Domingas, Plínio, Damiano e Lunga? Pouco, muito pouco. Estão ali cumprindo uma função estética e esquemática do qual Lunga e sua caracterização à lá Mad Max e sua persona gore-andrógina é divertida. E só. Nenhum deles apresenta mais que uma primeira camada de construção.

O conflito fundiário e sobre a água em Bacurau é onipresente e distante, sem nunca ser desenvolvido realmente. É fato que nada precisa ser descrito de modo enciclopédico e mastigado, mas KFM/Dornelles na verdade estão pouco interessados nisso. É um mero pretexto para entregar seu “filme de gênero” que se apressa em empilhar alguns dos elementos já citados aqui.

Há quem enxergue uma fábula de resistência ao Brasil bolsonarista, fascista, do agronegócio pistoleiro, dos interesses estrangeiros financiados por fundos de investimento poderosos que expulsam pessoas de suas casas, matam, perseguem e ameaçam. Há quem veja uma metáfora da divisão entre o Nordeste e o resto, a “polarização” e a escalada de violência em um país já extremamente violento.

Há sempre quem se apresse em pensar longos tratados de sociologia e “elucubrações” (uma das palavras mais feias da língua portuguesa) teóricas de toda sorte. Bom, esse tipo de coisa sempre é possível. Até para os filmes do Michael Bay, se você quiser.

KMF nunca resiste ao momento “a minha Veja fora do plástico”. Aqui, é o caso dos dois mercenários brasileiros do Sudeste primeiro devidamente ridicularizados pelo cantador local de Bacurau e depois alvo de chacota dos colegas estrangeiros por “não serem brancos” como eles, mas “latinos”, uma classe inferior.

Não tenho nenhuma dúvida de que o estereótipo do brasileiro branco classe média do Sudeste/Sul é real e disseminado, que se trata de uma praga urbana que se acha superior ao resto do país e elege as figuras mais grotescas e fascistas que se tem notícia. Que, no geral, é gente muito estúpida, muito brega e muito cretina que faz um mal tremendo ao Brasil. Mas isso, apesar de verdadeiro, é sociologia de boteco e não necessariamente brilhante.

É fácil buscar sustentações intelectuais suspeitas para confirmar as predileções legítimas por uma obra que, no fundo, é só “um filme de tiro com verniz distópico tipo exportação”. E doses de humor, sexo e psicotrópicos.

Em suma, entretenimento puro embalado para fazer a cabeça senso comum do espectador medíocre que vai reagir instantaneamente a todos os gatilhos que o filme propõe com requintes de revanchismo violento estilizado.

É o cinema comercial que, assuma ou não, KMF abraçou.

Há quem goste. E tudo certo com isso.

(Filme visto no Cine Brasília, setembro de 2019)

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Cinema