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Chico César em estado de graça

Para viver em estado de poesia
Me entranharia nestes sertões de você
Para deixar a vida que eu vivia
De cigania antes de te conhecer

De enganos livres que eu tinha porque queria
Por não saber que mais dia menos dia
Eu todo me encantaria pelo todo do seu ser

Pra misturar meia noite meio dia
E enfim saber que cantaria a cantoria
Que há tanto tempo queria a canção do bem querer

É belo vês o amor sem anestesia

O lirismo é importante, lembre-se. E Chico César, em um dos discos de 2015 que talvez não recebeu a atenção devida, está não só em estado de poesia, mas em estado de graça. A mensagem é relevante, não percamos isso de vista. A letra pode funcionar como mero adorno da canção ou, nos melhores casos, é parte fundamental da narrativa que se quer construir. Após 8 anos fora do estúdio, Chico conseguiu algo dificílimo: fazer um excelente disco imerso na plenitude de felicidade e gozo que um novo amor representa.

Porque, lembre-se, a desgraça amorosa e os desencantos são matéria da melhor produção artística que se tem notícia desde que o mundo é mundo. Já se disse que a felicidade é tóxica para o artista e, na maioria das vezes, de fato é. A felicidade enquanto complacência acomodada não combina com uma arte profunda e pungente. Chico inverte essa lógica. É o oposto do que Otto fez em “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos”, um dos melhores discos do fim da última década, totalmente impactado pela separação de Alessandra Negrini. Falei disso na época.

Aqui, Chico consegue entregar um lirismo que não se afunda na pieguice, um risco quase inescapável. Chico está completamente apaixonado por sua namorada, Bárbara. A quem dedica, além da ótima faixa título, a estupenda “Caracajus” e outras como “Caninana”, “Palavra Mágica”, “Da Taça” e “Museu”, praticamente todo “o lado A” do disco. A excelente e seresteira “Miaêro” é outro momento de destaque.

Em “Caracajus”, canta, meio Caetano, meio Qualquer Coisa:

“D’uma duna avisto a canoa boa
Sinto o cheiro que vem de você
E de você que vem
Lança agora tua âncora
Bárbara
Como um piercing no meu peito
Feito lança de arpão

Estou de um jeito tão porto
E tu tão perto, navio
Lança a âncora e acampa
Semeia em meus campos
As tuas sementes
Rega com suor e gozo
O roçado novo em meus lábios
Sábios de seus beijos
Sequiosos
Secos de sua chuva
Obsequiosos”

Seria muito se fosse só a sua maneira ora plácida, ora gozosa gloriosa de transformar em música sua paixão: “Caracajus” também eleva-se pelo andamento quebrado, variado, delicado e explosivo ao mesmo tempo, com a melodia harmoniosa crescendo aos poucos. “Estou em período fértil de ti”, diz.

O “lado B” abraça a veia política de Chico, fortalecido pelo período que passou como secretário de cultura da Paraíba, sua terra natal, onde pode conhecer os entraves e os desafios da política por dentro. Aí, o disco cai em qualidade sonora e lírica, apesar de “No Sumaré”, em seu retrato das ruas de SP e o forrózão de “Alberto” serem as melhores delas.

O disco, no entanto, finda com os 11 minutos de “Reis do Agronegócio”, um libelo ativista de Carlos Rennó em estrutura típica de Bob Dylan, que entrou na obra por força das redes sociais e que chegou a ser cantada por Chico no plenário da Câmara dos Deputados em homenagem ao Dia do Índio. Potente, diz em um trecho:

Vocês se elegem e legislam, feito cínicos
Em causa própria ou de empresa coligada
O frigo, a múlti de transgene e agentes químicos
Que bancam cada deputado da bancada
Té comunista cai no lobby antiecológico
Do ruralista cujo clã é um grande clube
Inclui até quem é racista e homofóbico
Vocês abafam, mas tá tudo no youtube

Vocês que enxotam o que luta por justiça
Vocês que oprimem quem produz e que preserva
Vocês que pilham, assediam e cobiçam
A terra indígena, o quilombo e a reserva
Vocês que podam e que fodem e que ferram
Quem represente pela frente uma barreira
Seja o posseiro, o seringueiro ou o sem-terra
O extrativista, o ambientalista ou a freira

Na média, “Estado de Poesia” é um grande álbum, que transpira o melhor que Chico César já produziu, colocando no caldeirão tudo aquilo que ele consegue fazer – e bem.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Reviews de Cds