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Ao vivo, o que Os Mutantes ainda tem para oferecer em 2016?

Resposta rápida: muita coisa. Não parece, eu sei. Roteiro clássico: banda veteraníssima, com mais de 50 anos de carreira, mantida por um único integrante original após um retorno de parte da sua formação anos antes e lançando discos inéditos de qualidade duvidosa que são mais ouvidos e promovidos lá fora do que no Brasil.

Já vimos esse roteiro antes, dezenas de vezes, e o resultado não costuma ser bom. Contra todas as previsões, o que Os Mutantes tem a seu favor? Além da discografia, o interesse vivo de Sérgio Dias, um dos melhores guitarristas da história desse país. Longe de se manter tocando por força do hábito, pra seguir coletando uns trocados ou por teimosia, Sérgio exala um prazer legítimo e constante de estar ali. Já entra no palco brincando, sorrindo (e caindo no chão) com a vocalista Esmerya Bulgari (que faz bem o seu papel, diga-se). Com um sorriso estampado no rosto o show inteiro, chamando a plateia para participar, Sérgio entrega logo no início, quando admite: “sabe o que é mais bacana? É que a gente tá junto há tanto tempo e ainda se diverte muito fazendo isso, é legal pra caralho”.

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E aí não tem erro: Sérgio não só está feliz como segue tocando muito, muito mesmo. Ainda que a precisão das notas não seja a mesma, um detalhe irrelevante diante da maneira brilhante com que empunha sua guitarra e, sobretudo, com que se dedica a jams, improvisações e solos no meio das músicas, transformando canções já excelentes em aquilo que o rock psicodélico e progressivo tem de melhor: sua capacidade de ultrapassar o padrão, seu improviso, de, ao vivo, fazer o que bem entender. E como legítimo guitar hero com tantas décadas de palco, Sérgio é exemplar nisso. “Olha que máximo esse riff, né?”, comenta antes das primeiras notas da sensacional “Jardim Elétrico”, faixa título de um dos discos que mais gosto, esse cânone do rock brasileiro:

O show é curto, certa de 1h20 com o bis, mas consegue passar por marcas inevitáveis da banda, ainda que naturalmente falte muito para um repertório tão potencialmente rico e variado. Mesmo o último álbum, “Fool Metal Jack”, de 2013, está representado e não faz feio: seja no blues pesadão (ainda que genérico) da faixa título ou no prog rock tradicional de “Time And Space”.

Ajuda o fato da banda estar afiada. Seja o baixista Vinícius Junqueira, o baterista Cláudio Tchernev ou mesmo o tecladista Henrique Peters. Uma cozinha pesada, que não só da conta do recado como adiciona mais temperos ao básico de algumas cancões. Mesmo “Bat Macumba”, em sua versão única, mantém o frescor:

Sobram clássicos, da irresistível “A Minha Menina”, a homenagem a Sergio Mendes que é “Cantor de Mambo”, a plácida “Balada do Louco”, cantada por uma plateia ainda tímida, a boa interpretação de “Ando Meio Desligado” ou nas que carregam mais ainda na psicodelia e no punch, caso de “Tecnicolor”, “Top Top” e a pesadíssima “A Hora e a Vez do Cabelo Nascer” que, não por acaso, ganhou uma versão do Sepultura no clássico “Beneath The Remains”, de 1989. Sérgio entrega uma versão realmente metal, caprichando nos solos.

O bis é finalizado com a sempre icônica “Panis Et Circenses”, oportunidade para manifestações políticas de Sérgio e da plateia. No fim, essa encarnação dos Mutantes sai bem melhor que a encomenda. Afinal, trata-se da mais importante banda da história do rock brasileiro e, mais que a pura nostalgia decadente, o que Sérgio Dias nos dá é uma entrega genuína de quem está ali por que quer e segue fazendo muitíssimo bem. Sem dúvida, um privilégio.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Reviews de Shows