Creio, que a despeito da classe social a que pertence, cada adulto que já foi criança (e eu realmente creio que se trata da maioria) guarda, nesta nossa velha cultura cristã-ocidental, boas recordações de Natal. E boas recordações de Natal não significa, necessariamente, boas recordações do Natal, em si mesmo, mas do sentimento de liberdade, esperança, e diversão, que guarda o final do ano – longe da escola, próximo dos jogos, dos livros, das pessoas preferidas. O final do ano é sem dúvida uma das melhores invenções (em alegria e em astúcia) da cultura ocidental, e para um garoto(a) na escola – com suas promessas de comidas exóticas, frias, mas fartas; alguns novos instrumentos para desvendar o tempo pleno das férias; acrescido do encantamento mágico-religioso que envolve a data – o Natal é um excelente corolário.
No entanto tão evidente quanto o fato que no final de cada luz há um túnel, e que o desapontamento é o irmão mais velho do tempo, nós nos tornamos mais sábios, mais chatos e mais lúcidos e abrimos os olhos para os meios tortos e corruptos sobre o qual opera a mágica do Natal, a esperança do ano novo: Logo notamos que a alegria que move as festas é em grande parte artificial, mais precisamente, fermentada ou destilada (‘artifícios’ que logo se tornam necessários para nós também); e do ponto de vista mais amplo, político, se somos um pouco mais “melancólicos” para notar, notamos que aquilo que move tudo isto é (como é notório) a maquinaria do mundo do dinheiro e do trabalho, que necessita do final do ano para, como uma fênix, virar cinzas somente para retornar à vida, firme e operante – envolvendo, lentamente, em chamas nossas esperanças através do ano que chega.
Tal como é o Natal, ao mesmo tempo algo bom e algo torto, da mesma forma é a cultura que o envolve. Tomando a via ao avesso, começando agora pela face corrupta, é impossível não nos desapontarmos com a maneira rasa, ausente de qualquer sentido ético, de qualquer sensibilidade estética, através da qual se vende o Natal. A este respeito eu não tomo o partido do cristão que enxerga o sepultamento de seu salvador – antes mesmo de seu nascimento. Como um pagão que enxerga com olhos encorajadores, mas reticentes ao menino Jesus (que de qualquer forma, se não tivesse crescido e ressuscitado, estaria rolando em sua cova), o que enxergo afundar com cada anuncio estúpido (e eles não são estúpidos, apenas, por serem anúncios), cada enfeite sem feitio algum, cada produto oportunista da indústria cultural, o que vejo perder aí é o núcleo ético, e poético, que as ‘boas almas’, cristãs, e também não cristãs, souberam construir através do Natal.
Este núcleo a que me refiro é o encontro do conforto e do gozo, ou da alegria, (“confort and joy”, como nos diz uma conhecida canção britânica de Natal) considerada em uma instância ética, simbolizada pela bondade (goodness). Este amálgama é, certamente, recente no cristianismo. Podemos atribuir a preocupação com a bondade nos apóstolos e cristãos medievais, podemos mesmo enxergar alguma alegria e prazer em suas vidas, mas certamente não o conforto – impensável em cristãos atirados aos leões, massacrando muçulmanos em Jerusalém, ou mesmo em um salvador cruzando o deserto.
Conforto, alegria e bondade encontramos, por exemplo, e sobretudo, na lareira de Charles Dickens. De fato, o espírito do Natal de Dickens, fonte para toda produção profunda da cultura do Natal, não é nada senão a junção do conforto, da alegria e da bondade – bondade que é o principio que deve universalizar o conforto e o prazer. O avarento e rabugento Sr. Scrooge, dos Contos de Natal, é o meio que utiliza Dickens para nos contar que o acúmulo de riquezas traz o conforto, mas a verdadeira e legítima alegria só e possível compartilhando este conforto – sendo bom.
Este núcleo ético e estético do Natal é profundo neste sentido: profundo enquanto reflete o anseio estético de muitos homens por uma vida plena de conforto, prazer e alegria (que é tostar uma maçã e acordar tarde em dias de inverno, como nos sugere Walter Benjamim); é ainda mais profundo quando aponta que o conforto, a alegria e o prazer somente são legítimos, eticamente e esteticamente, através da bondade – da divisão material daquilo que proporciona o conforto e o prazer até que, como diria Hegel, não falte cobertores a ninguém.
Esta lição de Natal se torna, por fim, negativamente profunda, quando podemos notar, que em nosso mundo cínico e cindido (em que não precisamos ser tão espertos quanto Weber para nos sentirmos esmagadas – e nos tornarmos, por vezes, sombrios e inúteis intelectualmente), a bondade que libertou o Sr. Scrooge, não é mais uma instância libertadora. Mais sombrio que os vilões de Dickens é um lugar e um tempo que alimenta sua miséria, também, da renuncia da riqueza, da solidariedade, da bondade. De fato, para aqueles que buscam acima de tudo a legitimidade, que são inflexíveis em seus princípios éticos (em seu impulso que visa universalizar os cobertores e as maçãs tostadas), não me perece que resta qualquer promessa de conforto, qualquer sinal de alegria…este caminho está, definitivamente, partido.