Furacão do morro de São Carlos, na zona norte do Rio, berço do samba, Luiz Melodia foi abraçado pelo mainstream da época, mas não cooptado. Esse corpo estranho de pegada samba, soul, rock, blues, choro, forró, bolero e o que mais quisesse colocar no balaio. Essa pérola negra de versos cortantes de amor romântico e carnal, do trágico cotidiano, o horror informal. Do desconforto ao consumismo desenfreado, reflexo típico do seu tempo – a virada dos 60 para os 70 – de uma forma absolutamente livre e sensual. A crítica social fluída.
“Se a gente falasse menos / talvez compreendesse mais / teatro, boate, cinema / qualquer prazer não satisfaz / (…) mas o tudo que se tem não representa nada / tá na cara que o jovem tem seu automóvel / o tudo que se tem / não representa tudo” canta ele em “Congênito”, a abertura do espetacular “Maravilhas Contemporâneas”, de 1976. Junto com “Pérola Negra”, de 73 – os 28 minutos de um jovem até então desconhecido no auge dos seus 22 anos que o colocou para sempre no panteão da música brasileira – e “Mico de Circo”, de 1978, esses três discos (somente eles) são suficientes para colocar Melodia entre os grandes músicos da história da humanidade.
De concisão fina e ácida, comprimindo em músicas curtas uma sonoridade riquíssima – de estilos, de instrumentos, de harmonias – e lírica afiada, Melodia se vai aos 66 anos de forma precoce. Introduzido ao grande esquema de Roberto Menescal/Philips e Guilherme Araújo por Waly Salomão e Torquato Neto, cantado por Gal Costa, Caetano Veloso, amigo de Jards Macalé, Sérgio Sampaio e tantos outros, vai-se um gênio absoluto, capaz de transformar músicas como “Baby Rose” em uma aula de desconstrução. Hoje tudo está fechado, baby. Vamos passear na praça enquanto o lobo não vem.
Poucos discos tem o peso de “Pérola Negra”. Poucos carregam uma capacidade tão rara de passear com tamanha desenvoltura em temas musicais tão diversos e um lirismo que beira o absurdo. “Quem sou eu / sou um morto que viveu / corpo humano que venceu / ninguém morreu (…) / a dança da morte / ninguém frequentava (…) / um morto mais vivo / de vida privada / no dia seguinte / o seguinte falhou” versa em “Abundantemente Morte”, música que sempre me pegou pela jugular, me colocou com suavidade contra a parede em sua sanha de sutileza travestida de violência.
Muitíssimo cedo, parecia ter a consciência da fragilidade da vida, da impermanência gravada na pele, de que tudo é local e efêmero. Moleque atrevido de voz singular, provocando o trivial com gana ímpar. Tá tudo solto por aí, tá tudo assim.
Para um disco em que todas as faixas são obras-primas – de “Estácio, Eu e Você”, “Vale Quanto Pesa”, “Farrapo Humano”, “Magrelinha” a “Forró de Janeiro” – é na faixa-título, eternizada, que Melodia deixa os rastros do que pautaria toda a sua carreira, sua busca e suas intenções desde então. Perdemos um dos raros, raríssimos, em uma época já dura o bastante.
Tente usar a roupa que eu estou usando. Tente esquecer em que ano estamos. Arranje algum sangue, escreva num pano.