Nunca escrevi um obituário tanto difícil quanto o de Ozzy Osbourne. Não que artistas absolutamente essenciais não tenham nos deixado antes. Deixaram, aos montes. E essa Revista Movin’ Up, ao passo que se tornou um repositório bissexto de críticas e textos que só escrevo quando quero – umas duas vezes ao ano – começou a se tornar uma coletânea de obituários.
O tempo faz a gente ter esses sentimentalismos de quem vê os artistas que te formaram passarem adiante. Sempre tive noção que a minha geração, ali na casa dos 40, é uma das últimas que terá a oportunidade de assistir ao vivo quem realmente formou a música moderna como a conhecemos, seja no metal, rock, jazz, MPB, reggae, hip-hop, etc, a lista é infinita.
Mas Ozzy Osbourne é um unicórnio entre os unicórnios. Ao lado de Tommy Iommi, Geezer Butler e Bill Ward, inventaram um gênero, redefiniram a história da música e influenciaram uma geração interminável de bandas e artistas que seguiram e seguem desafiando o status quo.
Como escrevi nas redes sociais, morremos todos um pouco junto com Ozzy. Morre um pouco do espírito criativo explosivo, do não estar nem aí para as convenções, de desafiar o óbvio, de expor as entranhas dos hipócritas. Morre quem foi capaz de criar a trilha sonora para a era dos extremos que ainda vivemos.
Quatro fodidos de uma cidade industrial de saco cheio do flower power hippie diante da desgraça do mundo.
Isso é importante, embora talvez não pareça para quem não é iniciado: o metal vem da desgraça, como dizia um cidadão aleatório entrevistado não sei onde em uma época que não existia a palavra meme e nem o “viral”, mas que se tornou um mantra da minha turma de desajustados do metal em Belo Horizonte, meca do metal brasileiro e do mundo, já que nos deu Sepultura, Sarcófago e tantas e tantas outras bandas menos conhecidas do público em geral.
Todas elas, seja de Belo Horizonte ou de rigorosamente qualquer lugar do mundo, bebem em uma fonte essencial: Black Sabbath e Ozzy Osbourne.
Eu já escrevi aqui nessa Movin’ Up, que não existiria se não houvesse o metal e não houvesse esses quatro garotos ferrados de Birmingham, em 2009 sobre como Tony Iommi criou o heavy metal no show do Heaven & Hell, em 2011 sobre como Ozzy Osbourne ainda seguia como o madman que conhecemos ao vivo em BH, sobre os shows do Black Sabbath com Ozzy em 2013 em SP e BH, assim como a morte de Ronnie James Dio em 2010, a biografia do Ozzy e sobre como o metal, embora tenha uma parcela significativa de reacionários, direitistas e neonazistas, vem, em essência, da esquerda proletária representada pelo Black Sabbath.
Embora bandas com certo peso existiam antes e muitas são apontadas como “proto-metal”, não existe discussão sobre quem realmente criou e moldou o metal, estilo que se fragmentou em milhares de outros subgêneros, todos eles originários do big bang primordial conhecido como Black Sabbath.
O show de despedida, apenas duas semanas atrás, apesar da celebração do metal na reunião de muitas bandas prestando sua reverência a Ozzy e ao Sabbath, foi bastante digno, porém difícil de assistir.
No fim, Ozzy cumpriu a promessa de seguir cantando até o fim da vida. Não que precisasse. Tivesse parado nos discos do Black Sabbath seria muito mais do que o suficiente. Mas ainda entregou uma carreira solo extraordinária, shows históricos, um festival itinerante que revelou novas bandas e se tornou um ícone da cultura pop com ares de personagem, em que pese o fato de a cultura pop não ser nada perto do Sabbath.
É clichê, porque é verdadeiro, dizer que toda obra de um grande artista obviamente não se esvai com a sua morte física. Pelo contrário. De um jeito ou de outro, determinada obra é, potencialmente, eterna. E pode se espalhar, se reproduzir e permanecer pelos infinitos formatos de mídia que a indústria criou no passado, mantém no presente e criará no futuro, se houver futuro.

O Black Sabbath foi um dos primeiros a questionar esse futuro, inclusive. Diante do mal-estar da civilização e da reação paz e amor ao contexto embebido em sexo livre, flores no cabelo e LSD da geração hippie do fim dos anos 60, o Black Sabbath, surgido da periferia fumegante de Birmingham, dos rejeitos industriais da classe média baixa de uma cidade irrelevante no mundo, criou a reação sonora para o brutal, sangrento, soturno e extremo século XX.
Ozzy se vai em um momento em que tudo isso segue valendo com força assombrosa, para desespero de nós, que ainda aqui estamos. O esgotamento dos recursos tidos como “naturais”, porém, o agravamento quase irreversível da crise climática, os mais e mais frequentes eventos extremos causados pela revolução industrial que a Inglaterra e Birmingham fazem parte, o aquecimento acelerado do planeta, tão acelerado que faz as previsões comedidas da ciência parecerem um passeio no parque, tudo isso transforma o Black Sabbath em uma banda mais atual do que era em 1970.
Azar o nosso.
Azar porque o presente é mais intragável que o passado, porém sempre mais aceitável que o futuro distópico e despótico que se avizinha, ano após ano.
Ozzy Osbourne cantou essa realidade como ninguém. Sem afetação, sem truques, sem precisar de muletas criadas em estúdio, ainda que todos os artistas façam uso de uma série de artimanhas. Adicionando no caldeirão lírico, conceitual e imagético tudo que o metal é e trata: guerras, política, destruição, transtornos mentais, existencialismo torto e, entre outras coisas, o suposto “satanismo” recreativo que sempre foi uma alegoria para chocar a sociedade conservadora que perseguiu e segue perseguindo o rock e o metal. Como disse Tom Araya, do Slayer, “eu não acredito no diabo, mas ele gera ótimas letras de música”.
Ozzy era um fanfarrão adorável. Tão adorável e midiático, tão “louco” quanto o seu apelido e o seu histórico, que corremos o risco de diminuir ou ignorar o quão único Ozzy Osbourne era como artista, do vocal até a presença de palco, das letras e das composições, de sua posição no mundo.
Ozzy Osbourne não permite imitações. Embora inúmeros tenham tentado e fracassado miseravelmente.
É a fonte primordial de um estilo que moldou e molda os anseios, a pulsão, a raiva, o ressentimento e a revolta de centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo, cada dia mais carcomido pela ignorância e pelo belicismo estúpido.
Ozzy Osbourne e o Black Sabbath transformaram em música pesada todas as dores de uma humanidade em decomposição. E não existe filosofia que dê conta dessa importância. Nem eles, provavelmente, têm essa dimensão.
Enquanto agonizamos, celebremos o presente, nos despedindo de quem nos deu tanto, para a eternidade, que pode acabar logo ali.