Foto de destaque: Divulgação / Victor Correa
João Bosco de Freitas Mucci tem mais de 50 anos de serviços prestados à música mundial. Como bom mineiro, de Ponte Nova, segue discreto como um monumento, lançando discos excelentes mesmo já na derradeira fase da carreira. “Boca Cheia de Frutas” não é exceção: entre grandes acertos como “Dandara”, “O Canto da Terra por Um Fio”, “Buraco” e “Gurufim”, por exemplo, e outros menos precisos, temos mais um belo registro de uma trajetória que coloca João Bosco no panteão da música brasileira e global.
Se fosse estadunidense ou europeu, seria considerado um gigante do mesmo quilate de tantos nomes que, no fim, é duvidoso se merecem o mesmo reconhecimento. Se no Brasil goza de prestígio, goza ainda menos do que deveria e certamente menos que alguns pares suspeitos.
Vendo João e sua banda ao vivo em São Paulo recentemente no SESC 14 Bis, anos depois do último show que presenciei, em Brasília, é impressionante como trata-se de grupo extremamente afiado, sem afetação, com repertório inevitavelmente brilhante, de técnica precisa e azeitada, entregando mais do que se espera de um setlist recheado de clássicos e baseado no ótimo “Abricó-de-macaco”, seu disco anterior, de 2020, outra joia. Uma pena que o novo disco não foi contemplado no show, mas oportunidade certamente não faltará.
Temos o privilégio de acompanhar a carreira de João ainda em vida, de vê-lo ao vivo e de estudar a sua obra.
Os shows disponíveis em plataformas como o YouTube, de diferentes fases da carreira, seja na exuzíaca encarnação dos anos 70 e 80 com Aldir Blanc (essa apresentação na TV Cultura de 79, veja, mesmo na televisão, é um assombro), do banho de jazz dos anos 00 como nos festivais europeus que frequentemente participa e por exemplo no espetacular show ao lado de Gonzalo Rubalcaba e Ivan Lins, com Nelson Faria na guitarra, de 2000, são impressionantes e, claro, se refletem até hoje.
Aliás, o disco ao vivo “Relicário: João Bosco ao vivo no SESC 1978”, lançado ano passado, é outro exemplo contundente do brilhantismo precoce do artista, capaz de lançar nada menos que cinco obras-primas de 1973 a 1979, da autointitulada estreia até “Linha de Passe”, formando uma das mais incríveis discografias de um artista no Brasil, que seguiu em nível altíssimo mesmo na década de 80, quando quase todo mundo que viveu seu auge nas duas décadas anteriores, derrapou.
Pego emprestado esse trecho do release do disco para resumir parte da característica central da obra de Bosco, de sua vida, sua essência:
“A abertura, com “Gênesis (Parto)”, com quase sete minutos de percussão (tocada por quatro músicos: dois percussionistas, o baterista e o baixista), pontuada apenas por improvisos vocais, já dava uma pista do que estava por vir: um show marcado pela influência africana na formação da música brasileira, algo que atravessaria toda a sua obra. João conta que sua ligação com essa sonoridade vem de sua cidade natal, Ponte Nova (MG), onde gostava de ir atrás dos blocos de congada, expressão cultural e religiosa afro-brasileira que mistura dança, música, teatro e espiritualidade de matriz africana e católica. “O parto é a África. É daí que nascemos, é daí que viemos”, diz o artista.
João Bosco detalha que a escolha do repertório foi permeada pela força percussiva e pela musicalidade barroca, outra de suas principais influências. Das Minas Gerais, onde nasceu e cresceu, ao Rio de Janeiro, onde veio viver no início de sua carreira — e encontrou o parceiro com quem compôs por décadas, criando mais de cem composições —, surgiu a sonoridade que deságua em sua música. “Esses momentos que nos remetem ao universo de uma África local, que é o samba, o jongo, o afro-samba e afins. Porque essas coisas têm nomes diferentes, mas pertencem ao mesmo universo”, analisa. Bolero, choro, jazz e até uma marcha-rancho (“Rancho da Goiabada”) se somam a esse rol de ritmos, que frequentemente se misturam”.
O texto que Bosco declama em “Agnus Sei”, criado especialmente para a turnê de “Tiro de Misericórdia”, é outra pérola do spoken word, um proto-rap não incidental: “Por onde nasceram, viveram e viverão as cortesãs? Os deprimidos, os humilhados e ofendidos, as donzelas, matronas, bicheiros, corsários, mutirão e motins? Por onde andaram e pisaram e lançaram os dados os pivetes, piratas, gigolôs, pederastas, dentistas, banguelas, balangandãs, ametistas, pivôs, roncos da cuíca, minha tia, meu irmão, meu avô? Inquilinos, sicranos, vizinhos, senhorios?”.
Como escrevi no texto-elegia a Aldir Blanc, “os parasitas da história não podem com qualquer um que produza arte como Aldir Blanc” e João Bosco.
Numa época em que o espetáculo (um salve sempre para Debord, Baudrillard e cia) em seu pior e mais banalizado sentido de teoria e prática se tornou a regra geral da música gravada, ao vivo, nas redes e no escambau, cada vez mais compacta, mais ligeira e vazia, mais retorcida e vilipendiada, mais e mais transformada em commodity com baixíssimo valor agregado – e pensávamos que não era possível piorar, mas sempre é – inclusive de gente muito adorada por aí mas que não tem um décimo da categoria, do esforço e do talento, mas tem contatos, para fazer uma carreira decente, é um bálsamo ouvir João Bosco.
Aqui as hipérboles, o exagero, o pleonasmo, as diversas formas de exaltação estão permitidas. No meio da gigantesca ressaca cultural-climática-política-estética em que vivemos, João Bosco é um alívio, um refúgio e um presente.