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A celebração do violão torto de Jards Macalé em “Coração Bifurcado”

Foto de destaque: Léu Britto / Divulgação Sesc Pompéia no Instagram

Jards Macalé não tem mais tempo a perder.  O artista carioca de 80 anos, após décadas de relativo ostracismo, começou a produzir febrilmente nos últimos 4 anos: “Besta Fera” de 2019 foi o primeiro de inéditas pra valer desde…”O Q Faço é Música”, de 1998 e ”Contrastes” de 1977 (“Lets Play That”, lançado em 1994 e gravado em 1983 foi algo à parte, uma jam session).

Depois de “Besta Fera” vieram “Síntese do Lance” com João Donato em 2021 e o novíssimo “Coração Bifurcado”, centro do show apresentado no SESC Pompéia em São Paulo no último final de semana.

A verdade é que Macalé construiu carreira sólida nos anos 60 e principalmente nos 70 com o lançamento de 4 obras-primas na sequência: o EP “Só Morto – Burning Night” de 1970, o autointitulado “Jards Macalé” de 1972, seu disco mais celebrado e duas obras esplêndidas e muito menos respeitadas do que deveriam pelo público em geral: “Aprender a Nadar” de 1974 e o já citado “Contrastes” de 1977.

Estas quatro obras concentram toda a genialidade torta, dissonante e lírica do violão de Macalé e sua “morbeza romântica”, muito bem acompanhado por Wally Salomão, parceiro incontornável e outros como Lanny Gordin, Tutty Moreno, Torquato Neto, Capinam, Wagner Tiso, Walter Franco e grande, grande elenco (os créditos desses 4 discos são um desfile de uma verdadeira constelação de artistas relevantes da música brasileira).

Rotulado mercadologicamente como “marginal” e “maldito” – termo que sempre desagradou a Jards e os outros companheiros de perseguição, como Sérgio Sampaio – Macalé teve ainda papel importantíssimo nas carreiras de Caetano Veloso (diretor musical, arranjador e guitarrista do clássico “Transa” de 1972, também levado aos palcos em 2023), Gal Costa e Maria Bethânia, atuando como compositor, arranjador, músico e parceiro das duas em diversos discos, além de sua carreira no cinema como ator e principalmente compositor de trilhas sonoras.

Foto: Léu Britto / Divulgação Sesc Pompéia no Instagram

Entre o fim dos anos 70 e durante as décadas de 80, 90, 00 e grande parte dos anos 10, Jards Macalé se dedicou principalmente a regravar, repaginar, reinterpretar e dar novas versões e parcerias para sua própria obra em vários álbuns e também a gravar discos de samba ao seu modo, claro, como o ótimo “4 Batutas & 1 Coringa” de 1987 (sua versão de “Para Ver as Meninas (Samba Infinito)” é alguma coisa de muito) e no projeto “Dobrando a Carioca”, ao lado de Moacyr Luz, Guinga e Zé Renato (que eu tive a oportunidade de ver ao vivo duas vezes em Brasília).

Após décadas em banho maria, digamos assim, Jards Macalé apertou o passo ao compor discos de inéditas ao lado dessa mais nem tão nova geração paulista que, além do trabalho solo e entre eles, também se dedicou a revitalizar a carreira de outros artistas como Elza Soares, caso de Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Rômulo Fróes e cia ltda.

O show de “Coração Bifurcado” começa com um famoso ponto de pombagira – assim como Macalé e a banda toda de mulheres estão trajados como pombagiras e malandros, o “povo da rua” na umbanda – e percebemos logo que se trata realmente de um show voltado para o disco que acaba de ser lançado, não um apanhado das principais músicas da carreira.

“Coração Bifurcado” é tocado praticamente na íntegra, mostrando o lado da morbeza romântica torta e às vezes cômica de Macalé enquanto o anterior, “Besta Fera”, era muito mais lúgubre em toda a atmosfera.

O fato de colocar na estrada uma turnê do disco atual é raro para artistas na casa dos 80 anos, que sempre preferem apostar no mais seguro e colocar uma ou duas canções novas no repertório.

Foto: Renan Perobelli e Gustavo Moita / Divulgação Jards Macalé no Instagram

E se é bom em disco, ao vivo “Coração Bifurcado” é ainda melhor, ganhando em cores, tons e pegada de uma banda azeitada e afiada formada por Maíra Freitas (teclado e voz), Lelena Anhaia (baixo), Aline Gonçalves (sopros), Navalha Carrera (guitarra), Flavia Belchior (bateria) e Victória dos Santos (percussão e voz).

Além de Macalé desfilando o violão mais torto e dissonante da música brasileira, em ótima forma, a começar pela faixa-título, “A arte de não morrer”, “Grãos de Açúcar”, “Mistérios do Nosso Amor” (gravada por Maria Bethânia no disco e cantada por Maíra Freitas no show) e “Simples Assim” (que seria gravada por Gal Costa, que acabou sendo substituída por Ná Ozetti no disco após a morte de Gal).

Foto: Renan Perobelli e Gustavo Moita / Divulgação Jards Macalé no Instagram

Mesmo os clássicos de Macalé aparecem em versões improvisadas e destoando do óbvio, como é típico do artista, caso de “Mal Secreto”, “Anjo Exterminado”, “Vapor Barato”, “Soluços” e “Hotel das Estrelas”.

Enquanto vê a sua geração se despedir desse planeta e alguns dos seus parceiros mais próximos irem embora recentemente, como Gal e João Donato, Jards Macalé consegue entregar muito em disco e no palco, nunca se ausentando e mantendo o fôlego mesmo resfriado.

Que ainda possamos ter o privilégio de ver artistas do quilate de Macalé mais um pouco é uma grandeza. A música brasileira dessa geração 60/70 é, com alguma margem, a melhor música feita no planeta, a despeito de não ser necessário comparar estilos incomparáveis.

Jards Macalé, que só faz o que quer – e fez muito, muitíssimo – pode e deve continuar assim.

Foto: Léu Britto / Divulgação Sesc Pompéia no Instagram

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Reviews de Shows