O roteiro é conhecido: filho de pai tradicional e repressor começa logo cedo a se rebelar contra as travas impostas pela família e resolve seguir carreira artística longe da cidade natal, passando um perrengue terrível no início até encontrar alguém que lhe dá uma boa chance e as coisas começam a se encaminhar. Com o primeiro hit e o primeiro disco, vem a pressão da fama, a cobrança por mais sucessos, a bajulação de estranhos e a incapacidade de lidar com todo esse novo cenário, o abuso crônico de álcool e drogas, a marginalização proposital por gravadoras e mídia e a consequente carreira se esgueirando entre altos e muitos baixos, sobrevivendo de shows em muquifos suspeitos e convites esporádicos aqui e ali.
O pai, no caso, é o maestro Raul Sampaio. O filho é Sérgio Sampaio. A cidade natal é Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo e o destino é o Rio de Janeiro. Grosso modo, esse é o roteiro que segue a biografia “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua!”, de Rodrigo Moreira, que leva o nome do seu maior sucesso – compacto que vendeu mais de 500 mil cópias em 1972/73 e levou Sampaio ao primeiro time da MPB, apressando a gravação do disco de mesmo nome que, ao contrário da expectativa, fracassou, com a pecha de “maldito” grudando em Sampaio e em boa parte da turma formada por Jards Macalé, Walter Franco, Luiz Melodia, Jorge Mautner e outros, que lidaram cada um à sua maneira com as armadilhas do mercado.
Como capixaba, sempre achei curioso como Cachoeiro de Itapemirim, no sul do estado, acabou por ser a terra de quase tudo que a cultura capixaba legou ao resto do país, especialmente entre os nomes mais conhecidos. Além de Sampaio, Roberto Carlos, Rubem Braga e Carlos Imperial também são de lá. Há algo na água de Cachoeiro que deveria levantar suspeitas, mas embora todos sejam culpados, nenhuma comprovação cientifica dessa tendência existe até o momento.
Por entrevistas com dezenas de parceiros, familiares, ex-companheiras e amigos em geral, Moreira reconstrói as broncas, as tendências, os medos, os interesses e a personalidade de Sampaio, seguindo um script típico de quase toda biografia. Sobre o fracasso comercial de toda a carreira de Sampaio pós o sucesso de “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, música icônica que se tornou hino do carnaval na época e até hoje é reverenciada, a impressão que os relatos passam é que grande parte desse fracasso, para além da máquina de moer carne que a indústria sempre foi, é culpa do próprio Sampaio.
Relapso, assustado, bêbado, amador e acuado, faltava continuamente a compromissos como entrevistas, participações na TV, se apresentava em shows com certo desleixo e desaparecia sem avisar por longos períodos, abandonando o Rio para refúgios em Cachoeiro ou outras cidades – marca que, a despeito de uma ou outra divergência, os entrevistados tendem a confirmar. Enfiado na maconha e na cocaína, é o álcool o verdadeiro companheiro de Sampaio, sua verdadeira sina que nunca conseguiu largar e que em última instância o levou à morte tão precoce, aos 47 anos.
Sempre bêbado, e não raro exageradamente bêbado, Sampaio tornava-se essa persona non grata, inconveniente, cruel, capaz de disparar impropérios contra os próprios amigos e parceiros, alguém que, com o tempo, ninguém aguenta mais ter por perto. Morando de favor na casa de amigos por longos períodos, Sampaio, apesar do talento inequívoco, usou e abusou da consideração dessas pessoas para passar por uma carreira sempre irregular, sobretudo após o espetacular “Tem Que Acontecer”, de 1976, que considero seu melhor disco, tanto em termos de composições quanto de produção, minuciosa e profissional em todos os aspectos, com “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua” vindo logo atrás. Sobre “o bloco”, o livro conta que, certa vez, confessando ao poeta e compositor Wally Salomão não entender como uma canção tão triste como essa fazia tanto sucesso no carnaval, Salomão respondeu – acertadamente – para Sampaio: “e quem te disse que o carnaval é alegre?”.
A canção também foi um peso para Sampaio, que se tornou injustamente “compositor de um hit só”, constantemente cobrado e conhecido exclusivamente por esta música, que diversas vezes se negou a cantar e afirmou, irritado e com razão, “eu não sou só ‘o Bloco…”. E de fato nunca foi.
Eu venho de um bando de cabras pastando, de um ninho de cobras me olhando, de herói, de poeta e bandido…
Se com frequência tornava-se uma figura detestável e um fardo para aqueles que conviviam com ele, Sampaio era talentoso e generoso na mesma medida. Algo evidente para quem se dispõe a ouvir suas duas obras-primas e mesmo os bons momentos de “Sinceramente”, de 1983, como “Homem de Trinta”, “Tolo Fui Eu”, “Cabra Cega” e “Faixa Seis” e do póstumo “Cruel”, de 2006, como “Em Nome de Deus”, “Roda Morta”, “Polícia Bandido Cachorro Dentista”, “Brasília” e “Rosa Púrpura de Cubatão”.
Do acolhimento por Raul Seixas na gravadora CBS, onde era produtor e com quem desenvolveu seu estilo musical nos primeiros anos e também cometeu a travessura que foi “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10”, de 1971, com Seixas, Miriam Batucada e Edy Star, um bom disco de galhofa e provocação no estilo Frank Zappa and The Mothers Of Invention (como buscavam) até a tentativa de “renascimento” na Bahia no início dos anos 90 e a morte prematura, o biógrafo Rodrigo Moreira consegue oferecer detalhes saborosos sobre as composições de algumas músicas, as escolhas para os discos, as alegrias e dissabores de Sampaio e seu círculo de amizades, companheiros de composição, estrada e influência, bem mais amplo do que se supõe num primeiro olhar.
Do já citado Raul Seixas – e seu triste fim definhando no apartamento e rechaçando visitas até a morte – a Xangai (padrinho do filho de Sampaio), Moacyr Luz, que acompanhou Sérgio por muitos e muitos anos, Fagner, com quem tinha uma relação bem próxima, Renato Piau, seu fiel escudeiro, Jards Macalé e Luiz Melodia, parceiros de primeira e segunda hora, Erasmo Carlos, Maria Bethania (que incluiu “Quatro Paredes” em repertório do seu show na década de 70), Roberto Menescal, os momentos e as influências de Caetano Veloso, as participações nos FIC (Festival Internacional da Canção) da vida, Sergio Natureza, Altamiro Carrilho…enfim, os círculos de influência de Sampaio são vários e diversos.
Da gravação de “Cala a Boca, Zebedeu”, standard do seu pai até a cáustica “Pobre Meu Pai” (olá, Kafka), revela bem da relação conflituosa dos dois. “Pobre meu pai / quatro punhos espalhados no ar / oito olhos vigiando o quintal / e o meu coração de vidro / se quebrou / doido meu pai / sete bocas mastigando o jantar / sete loucos entre o bem e o mal / e o meu coração de vidro / não parou de andar”, canta ele. Sampaio, diga-se, em seus melhores momentos foi sempre um dos grandes letristas da música brasileira.
Obrigado a migrar para a independência a partir de “Sinceramente”, Sampaio teve na Baixada Fluminense sempre uma recepção calorosa, assim como em circuitos alternativos do interior do país e capitais como Vitória, Brasília e Salvador mais portos nos quais ancorar. Se esgueirando entre casamentos fracassados, o vício cada vez pior na bebida, a necessidade permanente de compor – e muitas canções ainda são inéditas – a saúde frágil, a relação de indiferença ou consideração do mercado e da crítica, passando a ser “redescoberto” nos últimos anos, graças a projetos como o que gerou esta biografia, o disco póstumo, tributos, estudos e hotsites, Sampaio negou sempre a pecha de “maldito”, típico rótulo estúpido que o mercado fabrica para aqueles que não sabe direito como encaixar, assim como muitos da sua geração tem – até hoje – que refutar essa bobagem.
Para fãs e interessados na sua obra, apesar de alguns deslizes e causos desnecessários, a biografia de Rodrigo Moreira é fonte certa – com direito a ótimas fotos de arquivo – para desnudar uma das figuras mais ímpares que esse país produziu.