A Stoyca surgiu para mim como uma epifania. Seu primeiro disco, “Ninguém Estava Aqui”, lançado no final de 2016, passou batido para muita gente, eu incluso. Ouvindo o álbum hoje, é forte a marca desse tal espírito do tempo tão próximo e tão marcado, de um país inteiro adoecido na sua histeria. Afinal, vivemos uma época em que a Embaixada da Alemanha precisa explicar que o nazismo era de direita e sofre uma enxurrada de comentários “contestando” a veracidade dos fatos.
Vivemos uma época em que um candidato abertamente fascista, que tem como vice um general que declara sem nenhum pudor que dará um golpe, lidera as intenções de voto para presidente. Vivemos uma época de impeachment, de verdades fabricadas, de divisão de famílias, esgarçamento de sensibilidades, ameaças autoritárias concretas, de animosidade e belicismo 24/7. Tudo que na realidade nem sólido era – nossa democracia – começa a se desmanchar no ar tóxico de interesses bem declarados.
E no meio disso tudo há a arte. A única coisa que vale a pena. A arte, tão capaz de elevar o espírito humano, por um minuto que seja, tão necessária, tão maltratada. No meio disso tudo existe gente criando, escavando suas intimidades, expondo complexidades, investigando angústias, provocando fissuras no concreto do senso comum, das soluções de prateleira, da música enquanto linha de produção.
E no meio disso tudo existe Brasília, epicentro dos acontecimentos, cidade natal da Stoyca, cidade pesadamente peculiar, no seu planejamento, sua arquitetura, seu alinhamento urbano de tons soviéticos que escancara o paradoxo de ser planejada para carros, sua desigualdade profunda, seus espaços vazios, sua dificuldade intrínseca de comunicação. Brasília, cidade onde estou radicado já há alguns bons anos. Produzir arte em Brasília, decantar o espírito da capital em um produto atraente e viável, compactar estranhamentos dentro de uma interface sempre limitada.
Não são poucos os desafios para quem se propõe a tanto. E a Stoyca abusa do direito de exigir comprometimento do público, seja quem for. A Stoyca exige, pela complexidade, pela densidade dos temas, pela música que foge do óbvio, pela estética bem trabalhada, sem apelar ao lacre, pelo cuidado desmedido no acabamento, a filosofia, a metafísica e a experiência final. Há metafísica bastante em não pensar em nada. Em um mundo que funciona na base da urgência, incapaz de lidar com as sutilezas, em uma indústria que preza mais e mais pelo entretenimento rápido, a canção de consumo imediato antes que estrague, é de uma pretensão razoável demandar que o público consiga imergir no seu ambiente que não vem com airbag, correndo o risco de se chocar contra o muro. Da incompreensão, da impaciência, da incapacidade, da preguiça.
Mas a Stoyca não subestima o seu público. É preciso apostar contra a estupidez uma vez só, nem que seja por picardia. A Stoyca, porém, tem a faculdade de fazer isso sem pedantismo. De ser política sem partidarismo, sem ser panfletária. De abordar questões delicadas e impermanências bem distante do primeiro ou do segundo modelo mental padrão. Paga-se o preço. Virtualmente desconhecida até o momento e ouvida por quase ninguém, a Stoyca é de um fracasso extraordinário. Fracassa de novo, fracassa melhor, diz a famosa sentença de Beckett.
Lançando um novo EP na praça, “Formas de Voar”, que já mostra caminhos distintos do primeiro álbum, e passando a tocar mais em Brasília e Brasil afora, conversei com Jorge Verlindo, fundador, vocal e mente principal por trás dessa história toda. A conversa, longa, foi sobre música, mas certamente sobre bem mais que isso. Afinal, longe de estar isolada do mundo, a arte é produto do seu tempo. Inclusive destes tempos bicudos em que vivemos. Esta não é propriamente uma entrevista, mas um diálogo que não se priva de mostrar tensões. Dê o play na banda, puxe um café ou o que preferir, e leia o expurgo – filosófico, metodológico, social, artístico – abaixo. Pé no chão e olho no olho, como tem que ser.
Movin’ Up – Você saiu de Brasília, morou um tempo no Canadá e voltou para cá em 2010. Você já pensou como que a bolha de Brasília – política, econômica, social – impacta nessa percepção de mundo, nas suas relações pessoais, na música que produz?
Verlindo – Eu refleti sobre alguns aspectos, não muitos. Por exemplo: Brasília é uma cidade de solidão. Não acho isso necessariamente ruim. Tenho o hábito de levantar muito cedo, vir para o Plano Piloto, caminhar uma hora, uma hora e meia. É um tipo de solidão, mas que me agrada, vejo que to preenchendo espaços que me permitem pensar em coisas. Tem uma série de características de Brasília que interferem na obra de maneira não pensada. Ter um monte de gente de backgrounds diferentes torna a obra mais eclética. Por exemplo o Rafa Dornelles, que tocou nos primeiros discos, é um cara que escuta tudo. Isso interfere de maneira não premeditada e quando eu penso em efeitos colaterais disso, penso que a própria solidão que se vive aqui, que é grande, porque passamos muito tempo dentro do carro, nossos bares e restaurantes são vazios comparados com outras cidades, o espaço público que não é ocupado, tem uma dificuldade de falar dos próprios problemas de maneira mais clara, tem um reflexo no “Ninguém Estava Aqui” sim de maneira mais clara. As músicas são retratos de problemas muito brasilienses, embora outros nem tanto.
Mas veja: fiz um disco que pega 10 tipos de doenças diferentes, faz um retratão de cada uma e propõe uma saída transcendental para elas. Quem quer escutar isso? Se eu for enquadrar em alienações, isso é um tipo de alienação.
Concordo que Brasília é uma cidade solitária, eu sinto, muita gente que vem de fora sente isso, pela maneira como a vida se organiza aqui. As relações aqui levam mais tempo. As panelas que são criadas, apesar da pluralidade, é uma cidade estrangeira e ao mesmo tempo absorve esse “ethos” de Brasília, essa coisa que você acaba ficando mais reticente, isolado, alienado. Essas coisas se misturam muito. E por ser uma bolha acaba criando situações que só existem aqui. Você como ouvinte da música feita em Brasília, acha que reflete um pouco isso?
Verlindo – A primeira percepção que tenho da música de Brasília hoje é a vastidão de gente tocando, gente muito boa tecnicamente. Hoje eu vinha de carro e ouvi a Letícia Fialho dando entrevista. Tem a galera do choro, do jazz, por aí vai. Isso é meio impressionante em uma cidade com pouca gente, ter tanta gente produzindo, acho que é reflexo da bolha econômica. Existe dinheiro pra produzir, senão isso tudo não estaria acontecendo.
Do ponto de vista conceitual, embora não seja uma preocupação principal, há uma alienação temática. Existe uma produção grande para facetas do amor, por exemplo, que já foram exploradas exaustivamente. Não tem como esgarçar mais o tema. Isso tem um pouco do fator Brasília de isolar as pessoas em realidades.
Percebo um isolamento temático nosso. A galera do hip hop faz a sua parada, vive outra realidade, a galera das zonas mais ricas faz outra parada, mais focada no amor, nas desventuras e tal que eu acho ser característico daqui. Já me incomodei mais com isso. Mas veja: fiz um disco que pega 10 tipos de doenças diferentes, faz um retratão de cada uma e propõe uma saída transcendental para elas. Quem quer escutar isso? Se eu for enquadrar em alienações, isso é um tipo de alienação. É escolher uma faceta psicológica emocional da realidade, se alienar dentro dela e ficar produzindo. Hoje, apesar de identificar isso, acho que é natural, a vivência daqui vai propor coisas daqui, de SP vai propor coisas de SP, e por aí vai. Soa mais artificial vendo um cara cantando samba carioca da vivência na Asa Sul. Prefiro um cara cantando sobre o amor brasiliense, o que me parece mais autêntico.
Esse amor burguês, a vida na superquadra, na maquete, essa letargia do funcionalismo público…
Verlindo – Brasília tem uma bolha, mas uma série de camadas que você não escapa por ser brasileiro, se você quiser se sensibilizar com a camada mais superficial, fatalmente vai cair nesses clichês, nessas bolhas temáticas, estéticas, o caralho. Se você abrir mais os olhos você vai ver um monte de coisa. Muitos dos meus amigos não sabiam que eram servidos por negros nos bares e restaurantes. Digo pra eles: “Você já percebeu que temos uma desigualdade absurda e o cara que te serve não senta no mesmo lugar que você pra comer?”. Muitas pessoas que eu conheço não se deram conta ainda dessas camadas.
É tão naturalizado que é como se não existisse.
Verlindo – Na UnB (Universidade de Brasília), sempre fui de classe média baixa, era menos recurso e mais correria. Comparado com a média da população, tinha casa, ônibus, comida, tal, mas cansei de passar de situações na própria UnB de gente que tinha muita grana, não percebia a grana que tinha, e o fato de eu não ter, alguém não ter, gera situações do tipo “como assim você não vai fazer tal coisa, ir no show tal?”, etc. Isso te segrega e distancia sem haver uma conversa sobre isso. Mesmo eu não sendo negro. Isso na lupa você vê trocentas situações. Não acho o fato de Brasilia ser uma cidade alienante uma desculpa para ser alienado.
Você acha que de alguma maneira essa bolha – de quem ganha na média mais de 90% dos brasileiros, ter seu privilégio – o cara não querer pagar, a não ser que seja uma “experiência” dentro de uma área VIP, ele querer porque “ele merece”, acha que tem o direito àquilo?
Verlindo – Acho que somos um lugar estratificado que não se reconhece como tal. Tem uma série de nuances diferentes na população, se eu falar isso parece que Brasília tem só gente abonada e não é verdade. Tem muito correria por aí. Acho que essa estratificação tem uma cena complexa, fatores como o governo patrocinar muito show de graça, sem ter uma política mais precisa de como oferecer cultura pra sociedade e pra setores da sociedade. Tem que cobrar do cara que não tem como pagar? Também acho meio estranho a pessoa não entender que cultura é um produto que ela tá comprando. São tantas nuances diferentes para chegar num ponto onde a cultura não é algo que você compra, mas quando um estrangeiro vem aqui e cobra R$ 500, 600 num ingresso, a galera vai. Precisa identificar o problema, estudar o problema, situações diferentes, os efeitos colaterais para falar “talvez seja isso, aquilo outro”.
Até que se prove o contrário você é um perdedor.
Há a fatia de uma pizza hiper estratificada que a gente não entendeu ainda. O produtor cultural de Brasília tem muito medo de arriscar, então sempre aposta em coisas que vai dar resultado imediato porque viver no Brasil é muito caro. Todo mundo quer chegar numa situação de estabilidade, de segurança financeira muito rápido. E aí gera um volume de cópia muito grande. A gente não tem mais liberdade para arriscar ser a gente mesmo, vai coletando daqui e dali e fabrica um contingente dispensável de produção.
Arriscar custa caro.
Verlindo – Sim. Até que se prove o contrário você é um perdedor. As pessoas ficam o tempo todo tentando provar que não são perdedoras, sendo que poderiam dar um bypass nessa conversa toda, viajar na parada delas, a viagem identitária que fosse, tem muita liberdade identitária, mas muito bolsão exclusivista. A pessoa se sente pouco segura para construir o dela, adere ali, se sente independente, mas para mim é um bigode falso. Acho esse buraco do consumo de cultura inexplorado. Precisa sujar mais a mão aí.
Teoricamente, um lugar que tem mais dinheiro, mais estabilidade, tem fomento do governo, você teria mais espaço para experimentar, dar errado, falhar, e tal, mas não tem.
Verlindo – O custo de vida é altíssimo. O artista, entende-se que tem estímulo do governo, se for puramente artista, no caso eu não sou, sou empresário. Mas vai ter que viver daquilo, se sustentar com um custo de vida super alto, construído com relações extremamente íntimas. Não é onde chega um cara novo, floresce. Até você chegar em Brasília, entrar na máquina, tá todo mundo sentado nas cadeiras disponíveis. Vivo outra realidade, produzo as coisas independentes do meu punho, não me orgulho, mas é a realidade que eu vivo. Acho que tem uma parcela de medo muito grande da própria instabilidade que viver aqui oferece. O governo não tem vagas para todo mundo que quer produzir arte, a cidade tem um recurso que tá restrito aos funcionários públicos e coisas mais próximas. Como empresário, te digo que é duro pra poder empatar o jogo mensalmente. Não posso errar. Se você tem um cara na cadeia produtiva da música, tem um público que paga pouco pra ele, não acha que aquilo vale, um fomento limitado, um monte de gente disputando entre si para ter acesso aos poucos recursos de cultura que tem, essas pessoas fatalmente vão ter muito medo de arriscar. Precisam apostar em algo que garanta o sustento no mês seguinte. A adesão é baixa, nós temos muito shows vazios.
Até você chegar em Brasília, entrar na máquina, tá todo mundo sentado nas cadeiras disponíveis.
Existe a noção de que a arte é outra coisa, é algo além, não é um provedor de algo, tá acima dessa categoria de serviços. Mas também existe da parte do artista não se ver como profissional, na minha visão. Ele não se insere nessa cadeia e gera distorções como a própria falta de profissionalismo, de compromisso, atrasos excessivos, etc, etc. Acontece realmente isso? Atrapalha a cena de Brasília?
Verlindo – Eu acho que isso atrapalha qualquer cena que exista. Você não profissionalizar o negócio. Tecnicamente tem muito artista muito profissional de nível internacional disputando um espaço escasso. Mas acho que tem uma esquizofrenia da própria produção cultural de não se sentar, se reunir, falar abertamente disso ao ponto em que se chegue no modelo mental que a gente quer criar. E isso foi muito preciso na história da humanidade. Pelo fato de não construir abertamente isso, as oportunidades são um pouco difusas, o governo tem iniciativas maravilhosas, mas muito dos espaços de discussão acontecem numa quarta-feira de 8h às 18. Eu como trabalhador braçal não tenho como ir nesse dia e horário para discutir cadeia produtiva da música. Isso é uma distorção. Acho que há discussões sobre isso, não tem sido suficiente, precisa falar de uma maneira mais clara, baixar um pouco a guarda porque a guarda do artista está sempre muito alta, tem medo de ser criticado, de ser visto como alguém que não é artista suficiente, não vale o suficiente, tem uma série de medos. Uma série de medos gera uma série de silêncios. E esses silêncios vão gerando esquizofrenias. Você vê os sintomas no dia a dia.
É isso que você tá levantando. Acho esse problema grande demais para resolver mês que vem, ano que vem. Tenho testado hipóteses com eventos, articulando com alguns artistas, tentando pensar uma produção de conteúdo voltado para a arte, é o que tá na minha mão, não vejo isso sendo resolvido no médio prazo, é longo, mas volta para o problema que a primeira fase de resolução de alguma coisa é contemplar o que precisa ser resolvido. Enquanto nem aceitar que existe problemas, nem identificar eles, é um círculo vicioso.
A guarda do artista está sempre muito alta, tem medo de ser criticado, de ser visto como alguém que não é artista suficiente, não vale o suficiente, tem uma série de medos. Uma série de medos gera uma série de silêncios.
Muitas políticas e iniciativas ficam restritas porque só pode acessar quem tem disponibilidade de tempo, acesso. Não é igual para todo mundo. Existe uma separação clara sobre o Plano e o resto.
Verlindo – Sem dúvida. O dinheiro é escasso e isso gera uma série de problemas. Deveríamos estar discutindo sobre isso, as iniciativas às vezes acontecem em momentos impraticáveis. A menos que queiramos atingir esse artista, que tipo de artista, tem certas mecânicas que são irrefletidas e que não tem tanta liberdade para expor. O cara tá falando sobre isso mas tá recebendo apoio. “Quem ele pensa que é para falar sobre isso?”. Enquanto a gente tiver um monte de “quem ele pensa que é para fazer x y z”, a gente realmente não vai estar discutindo assuntos sensíveis. Que respondem por boa parte dos problemas.
Dá para dizer de maneira mais ampla que o artista está sempre na defensiva em relação ao que ele produz e não tem ambiente aberto para crítica, maduro, de troca e dialética.
Verlindo – A vida do artista é dura. “Ah, mas o cara faz arte…”. É dura pelo fato de não estruturar uma cadeia, gera uma série de problemas que voltam ao ponto inicial. Não acho essa vida fácil, mas quando eu tenho um problema pessoal, passa por aceitar e começar a endereçar ele. Se eu falar não, negar a origem, fico longe da resolução do problema. Eu acho que não estamos tocando nos assuntos sensíveis porque estamos com medo. Falar sobre isso gera constrangimento no geral. Homens não falam de assuntos sensíveis. E o meio artístico é muito masculino. Eu sou um cara do design e nós não temos constrangimento de falar das tensões e vicissitudes de ser designer. O músico não, porque existe uma pressão fantasma que a gente tem que ficar o tempo todo aparentando estar prestes a ter sucesso. Isso é problemático porque a gente não discute nada.
Tem uma outra linha dessa história. Vejo muitos amigos meus presos na questão da crítica negativa, sobretudo. Você não tem uma disposição de fazer essa crítica porque o custo pessoal é muito grande, da parte do artista não é maduro o suficiente para receber, dialogar com ela, interpretar, seguir a vida.
Verlindo – Eu tenho complexidades em relação a essas coisas, sinto que não tenho resposta, levanto as variáveis e tento digeri-las. O artista de maneira geral tem muita dificuldade com crítica, muita. Eu venho de um mercado onde a crítica é escancarada. Se faz um layout ruim, rasga tudo e joga fora. Na música a pessoa nem entende o que você falou porque começa a deformar tanto que a mensagem não chega. Acho que temos vivido uma abertura baixa para a qualidade da crítica, que vai construir e não sabe o que fazer com ela. Suponho que eu não recebi nenhuma até hoje porque poucas pessoas ouviram.
Eu acho que não estamos tocando nos assuntos sensíveis porque estamos com medo. Falar sobre isso gera constrangimento no geral. Homens não falam de assuntos sensíveis. E o meio artístico é muito masculino.
Mas eu entendo que num mercado maduro ia ter crítica rolando solta para todo lado. Não só isso, elogios, construções, interpretações, o caralho. Enquanto for tudo restrito não tem como fazer só uma parte. Construir uma percepção da realidade, rica pra caralho, de um artista, sem abordar as contradições, dificuldades, vira uma bajulação que já vem despida de valor de nascença. Tem outro fator que não sei se o artista não tá preparado pra crítica ou a nossa sociedade e o brasileiro de uma forma geral foi construindo uma rejeição absurda à crítica. Eu como profissional de comunicação preciso ser crítico, já vi muitos clientes meus se traumatizarem com certas abordagens, porque a gente tem uma sensibilidade aguda para tudo. E isso impede de crescer.
A cultura da crítica é tão incipiente que qualquer coisa vira um pandemônio.
Verlindo – Acho que o brasileiro tem isso e o artista, que produz uma coisa do íntimo dele, estetizante, que tem muita dificuldade para fazer, puta parto para chegar nisso, sendo essa pessoa com rejeição a crítica, dobra a sensibilidade. É foda. Eu confesso que tive que construir a minha paciência tanto para as críticas quanto para os silêncios, dificuldades, porque se você for fazer uma arte verdadeira e não estiver disposto a isso você vai capotar diariamente. A Stoyca é extremamente aberta para a crítica, internamente. Nós discutimos cada instrumento não só pelo responsável por ele. Até virar um fonograma nós discutimos de maneira serena, não é natural, é um esforço para ficar de boa e ouvir. A formação hoje é saudável porque todo mundo está desperto e sensível a ouvir o outro e tentar melhorar o que está fazendo.
Você toma muito cuidado com as palavras, a interpretação, você tem respostas que são complexas, seja a música ou outra coisa, isso é evidente no que você produz. Você precisa de sinais e retornos, sua abordagem é além do básico num mundo que é simplista, imediatista o tempo inteiro, que ninguém tem tempo supostamente pra nada, está disposto pra nada disso e te exige repostas imediatas. Você sente uma angústia em relação a isso?
Verlindo – Você matou uma charada interessante porque eu discuto isso muito comigo mesmo, meus amigos, as pessoas próximas que é: nossa obra é complexa. Identifico isso nas pessoas que trabalham comigo, tem momentos que é tão complexo que é difícil verbalizar, esses momentos não querem saber em qual contexto você tá. Eles se manifestam. Invariavelmente eu me sinto pressionado para ter retorno, respostas, progressão de carreira musical, porque existe uma pressão silenciosa, fantasmagórica, em cima de todo mundo. Tento não ceder porque tenho a sensação de que construí relações maravilhosas, topando desafios assustadores, e nenhuma dessas relações foi sendo condescendente. Várias das pessoas que me conhecem me reconhecem como alguém às vezes difícil de lidar, rigoroso pra caralho, mas também alguém que ajuda a construir algo. Eu espelho isso para a minha produção. Estou angustiado, vivo angustiado, hoje ela é calma, antes tinha só angústia. Mas não vou fazer concessões nesse aspecto. Seja lá o que for acontecer com a obra, ela precisa criar um vínculo legítimo com quem for ouvir do outro lado.
Ou seja, o artista precisa lidar com essa angústia e frustração dele e dos outros o tempo inteiro.
Verlindo – O artista e o ser humano. Eu trabalho com criação em outra área da vida, eu sou muito mais resiliente com frustração por causa disso. A galera do design é sangue no olho, se o mercado da música tivesse um pouco desse espírito, talvez dispusesse de uma saúde mental melhor. Antes de registrar uma música, a gente sofre pra caralho. Tem música no disco que eu achei que seria uma bosta, ia ter que tirar no disco e pronto. Depois de muito sofrer, a minha esposa falou pra mim “nunca achei que essa música ia ficar boa, porque escutava ela e achava uma merda”. Que massa, ela está achando bom, fluiu, houve uma crítica interna para não deixar sair uma bosta nem morrer no caminho.
E por que os artistas em geral não tem o espírito aberto para isso?
Verlindo – Ser artista no Brasil não é fácil. Não é uma coisa serena, você construir uma obra e ter consistência, não fazer concessões, olhar para o lugar e tentar chegar naquele lugar em que você está olhando. Exige muito. Sinto que nós precisamos ser psicoeducados. Aprender a ser resiliente do ponto de vista da crítica, da relação interpessoal, colocar nossa situação em cheque, ser generoso sem segundas intenções, porque quem é assim é generoso com ele mesmo. Tem uma série de psicoeducações que precisavam estar sendo construídas que aparecem mais criticamente na arte, onde você está com as calças arriadas o tempo todo. Se você canta mal, tá óbvio. A música é uma lupa nisso. Tem interferências da nossa própria dificuldade psicoeducacional que ficam arraigadas na arte. Vamos discutir sobre isso…as tripas na mesa, fazer uma auditoria? Senão o lugar vai ser sempre o lugar de doenças silenciosas. Estamos silenciosamente doentes.
Seja lá o que for acontecer com a obra, ela precisa criar um vínculo legítimo com quem for ouvir do outro lado.
Você acha que o fato de serem uma banda iniciante, começando a carreira, vocês tem mais ou menos liberdade? A pressão é nenhuma agora para arriscar, mudar, inverter a lógica de um disco para o outro, de uma música para outra, ao contrário de um artista grande que tem que arcar com uma série de expectativas dentro de uma margem de erro?
Verlindo – É um olhar de grupo mas vou ter que te responder individualmente. Primeiro eu não me considero artista ou publicitário, tenho uma série de dificuldades identitárias. Eu fico muito mais internamente pensando nas mensagens que queria estar expressando, endereçados por meio da poesia, da sensibilização sensorial. Para o público ver algo que não viu ainda. Esse lugar onde eu estou é meio sem pressão. Eu não me sinto pressionado com nada. Eu gosto de olhar para cada pessoa quando ela tá escutando minha música. Eu fico estudando ela. E acho maravilhoso quando vejo emoção aparecendo.
Essa dinâmica acontece, a pessoa começa, experimenta, depois precisa assumir um eixo. Quanto mais eu posto, menos likes eu tenho. To num lugar em que tenho muita liberdade para fazer as coisas. Não sei como reagiria a uma situação dessas, mas quando eu penso nisso eu vejo que preciso oferecer a oportunidade para repensar todos os modelos mentais que eu to inserido a qualquer momento.
Esse modelo mental do rock de seguir um certo estereótipo, é um modelo temporal. E as pessoas ficam olhando e viram cópias, se transformam a partir disso. Esse fenômeno eu não quero viver na vida, porque acho um fenômeno que é uma desconstrução ruim. Me ofereço diariamente a perspectiva de que se eu precisar rever meus modelos, da cadeia produtiva, minha, interna, como a gente se relaciona como banda, como um presente que estou dando para mim. Se essa cadeia produtiva não funciona, vamos repensar. Se a gente vai conseguir isso em escala, você precisa me entrevistar daqui 10 anos.
Você está começando, público pequeno, e tal. Ao mesmo tempo se você muda sempre de abordagem estética, sonora, etc, você tem mais dificuldade para conquistar público. Por mais que a pressão seja virtualmente pequena, indiretamente você precisa criar uma entidade. Como equilibra experimentação com a necessidade de criar identidade?
Verlindo – Essa identidade está presente nos nossos discos, é mega importante, mas ela tem que ser amadurecida e exposta não de uma maneira estática. Identidade é importante, eu não me sinto pressionado a seguir uma linha do que acontece, tenho afinidades e interesses muito mais do que pressões. Se isso virar uma identidade, entro numa segunda fase que acho do caralho que é você ampliar a identidade. Nossa música nova, por exemplo, é mais uma trilha, não tem letra, é uma outra onda, uma amplificação de identidade. Mas está dentro da nossa fronteira. Isso não tem como escapar. É natural, mas não pode nos preocupar.
Não pode ser castrador.
A banda já tem isso bem definido. As guitarras mudaram porque várias pessoas passaram. A Adriah agora é parte oficial da banda. As guitarras mudam, mas estão dentro de um lugar, dá para ver claramente que a guitarra não é um elemento aleatório, mas de construção de ideário, vai construindo cenas ali dentro, segue uma linha. Tem muitas bandas que fazem isso? Tem. Mas acho que temos uma identidade que chega em algum lugar, as pessoas precisam de identidades ricas. O público, para te comprar, em qualquer área, precisa disso.
É muito nítido na sua música, cada lugar na sua coisa. Cada instrumento no seu lugar, dentro de uma dinâmica que funciona, nada está em excesso, um instrumento em cima do outro ou a voz, isso em última instancia é administração de ego também. Dentro do estúdio era essa a ideia, chegar nesse equilíbrio, nesse resultado? Como funciona isso na hora de fazer acontecer?
Verlindo – Como eu não me vejo como artista, a mensagem tem soberania. A obra tem soberania, não é a minha voz, a guitarra do Rafa, da Adriah, é o efeito que vai causar na pessoa. Acho do caralho testemunhar gente cantando as minhas músicas, na plateia, em algum lugar, é lindo, isso é do caralho. É um sintoma de que a música entrou no emocional, no psicológico, que não teve oposição entre ela e aquilo. No estúdio é um esforço de equalização de ego. Não dá para matar o ego de todo mundo, as pessoas precisam se sentir reconhecidas. Nós somos uma banda em que você vê o baixo acontecendo, já tem essa premissa e no estúdio temos conversas constantes sobre isso. Não de forma pacífica, precisamos deliberar muito. Estamos abertos a abrir, refinar ideia, a partir de contestações. Realmente essa perspectiva nos interessa, dá trabalho pra caralho.
Você quer manter essa premissa?
Verlindo – Com a entrada da Adriah isso só ficou mais fácil, porque ela assimilou essa mentalidade muito rápido, ela é gênia, maravilhosa, saca muito de música. E ela tá fora da zona de conforto dela, aceitou o desafio, vejo ela se divertindo, curtindo a parada, acho que se a gente estiver falando de identidade, isso é uma. A obra ser soberana acima das pessoas que estão ali fazendo ela.
Você disse que observa o público, as pessoas cantando. Claro que você tem vários palcos e ambientes diferentes em que se apresenta, mas você é sempre o tipo de artista que presta atenção em tudo?
Verlindo – Eu recebi uma crítica de um amigo meu de banda, um cara iluminado, que ele falou que eu desligo pouco. Que eu to hiperconsciente no palco 100% do tempo. Interessante ele ter falado isso porque eu quero endereçar. Não acho que tenho que ir para o extremo oposto, mas encontrar um lugar para mim aí. 100% do tempo estou consciente, parece que tem uma cabeça virada para dentro sempre. No passado observei muita indiferença quanto a gente tocava, nesse ano tenho visto umas coisas maravilhosas, perplexidade. Precisa existir essa parte que é entrega total, porque ela vai inclusive amplificar a experiência das pessoas que nos vê. Quero me tornar um cara menos hiperconsciente, mais solto, mais tranquilo, sem perder esse olhar. Porque é legal você ver as coisas acontecendo.
Sobre letra, rítmica, vê-se que você tem um compasso, uma estrutura de abordagem lírica diferente da maioria das bandas. Você falou de influências como Dorival Caymmi, que é muito compassada, marcada, de sentenças, que vem de uma tradição completamente diferente do que vocês fazem. É difícil conectar essas coisas. Queria que você falasse um pouco sobre isso.
Verlindo – Isso é difícil de responder porque costumo ver várias vezes uma letra para mostrar pra minha esposa. Isso aqui é Paulinho da Viola 1971, aqui é Lenine, um pouco de Gilberto Gil, eu olho as coisas e vejo os meus heróis ali, quando estou lendo as minhas letras. Mas o que tem acontecido ultimamente é que eu me sinto na necessidade de endereçar assuntos. O que eu tenho para dizer sobre isso? “Nada novo sob o sol” é uma música que contesta o disco todo anterior, o “Ninguém Estava Aqui”. Essa curadoria de doenças analisadas…essa música e uma mulher falando para um homem, parabéns, mas onde fica a vida cotidiana, a relação. O assunto nasceu primeiro, senti essa necessidade de contestar o disco, inclusive argumentativa, de posicionamento. Eu sou muito permeável à poesia e a estilos de música, gosto de hip hop, repente, muitas coisas que as estéticas de poesia são diferentes.
O que geralmente acontece quando o assunto vem é que eu penso que queria que ele soasse como tal coisa. Claro que eu falho muito, então vira outra coisa. Enxergo muito mal, sou cego, eu gosto de ver as coisas embaçadas e desconstruídas. Os óculos para mim ia estragar toda a graça de enxergar mal. A tentativa fracassa e chego em lugares interessantes, tem DNA próprio. Quando eu vou para o ritmo gosto de pensar que não quero saber que estou escrevendo uma letra quando estou escrevendo uma letra, tem um interlocutor, que estou pensando a respeito ou com uma ideia fixa.
A “Aves de Capoeira” é uma crise de ansiedade de TAG. Um tipo de transtorno que tudo vai acabar, amanhã já era sua vida. Muita gente tem, eu também. Eu tentei pensar assim, isso não é uma música, é uma crise de ansiedade com trilha sonora. Eu tento encontrar situações internas de discurso para além da letra, tem que ter linguagem, mas eu não preciso falar que a métrica, tem que repetir ou não repetir. As coisas vão ganhando forma.
Se a gente estiver falando de identidade, isso é uma. A obra ser soberana acima das pessoas que estão ali fazendo ela.
Sempre me fascinou a maneira como, dentro de uma música, você precisa conciliar as duas coisas. O que determina o quê. O lírico e o sonoro. Como você encaixa isso.
Verlindo – Eu me sinto mais como um facilitador do que criador, porque TAG é uma doença que várias pessoas tem. Eu sou hospedeiro de um transtorno, então de certa forma eu estou deixando aquele negócio ganhar corpo, vou lá e ele escoa na música. Não tenho preocupações metodológicas, apesar de ter metodologias, porque preciso chegar até o fim, senão não tinha disco. Ela é importante para facilitar que a coisa aconteça, mas não estabeleço hierarquia. Se a música soa de uma forma, a melodia será soberana e a letra dará margem. Tem músicas que a letra será mais importante, tenho que fazer concessões para chegar ao resultado que você quer. O soberano nesse processo todo é o sentimento que precisa ser gerado. Se você tem que mexer na letra, na harmonia, na melodia, eu fico tranquilo sobre isso, mas o sentimento tem que ser soberano.
“Aves de Capoeira”, que você citou, não sabia desse background, mas é uma das músicas que mais me chamou atenção, pela forma etérea, poética, não exatamente hermético, mas fica na cabeça. Uma das que mais fica, ficou na minha, pelo menos. Os alongamentos vocais que você usa.
Verlindo – Essa é uma música Dorival. Não sei se dá para sacar, mas sempre lembro de “vaaaamo chamar o vento”, aquele assovio. É uma música de antecipação, ter que buscar o peixe, o vento que leva, traz, porque sem peixe…fodeu. Eu quis trazer um pouco desse sentimento, de angústia. Em termos de tema, tenho um amigo antigo que ele teve a primeira crise de ansiedade que eu vi na vida, ele manifestou, fiquei bem impressionado. Depois me descobri um ansioso também. A ansiedade vem de ciclos internos, de pensamentos ruins em loop, não é inteiro, é fragmentado. Eu queria criar essa sensação de que alguém lá dentro tá vendo uma situação catastrófica e não tem certeza se é real ou não, gera um sentimento, vai escalando, até o desfecho da música onde o céu está caindo. Que é uma referência a um conto inglês das antigas que a Disney transformou em Chicken Little. As raposas querem entrar no galinheiro e destruir tudo, jogam um pedaço de um troço pintado de azul, o pintinho mais ansioso alopra, chega à conclusão de que o céu tá caindo, o galinheiro perde as defesas, as raposas invadem e destroem tudo.
Eu acho que a ansiedade e a histeria criam terra fértil para dividir e conquistar. Basicamente, são temas muito próximos. Por isso reflete sobre ansiedade e sobre os efeitos da ansiedade coletiva. Precisava costurar várias coisas específicas. Um tom regional no violão, um pouco de Dorival, esse sentimento de que é a pessoa sentindo a angústia, a súplica. Eu queria criar uma sensação que de certa forma o personagem sabe que tem uma coisa estranha acontecendo, a percepção dele tá enviesada, só que essa ideia fixa vai ganhando uma escalada de acontecimentos. Criar uma cena grande para ela. É difícil de ouvir e falar é isso. Eu acho o inconsciente da audiência mega inteligente. Ele é uma figura super adestrada e preparada por centenas de milhares de anos de assimilação de informação.
Religião e a metafisica estão presentes que no que você faz e escreve, isso é deliberado, não?
Verlindo – Uma música emblemática disso é “Uruboro”, baseada num conto do Jorge Luís Borges, que é um encontro do cara com ele mesmo em fases diferentes da vida. Esse disco (“Ninguém Estava Aqui”) especificamente tem muitas coisas transcendentais porque a pergunta é muito pantanosa. O disco aborda várias facetas de dificuldades, doenças psicológicas da sociedade. Ficou natural pra mim construir sonoridades e perspectivas transcendentais porque na minha vivência de cada uma dessas doenças, quando eu era o alvo, foi transcender.
A música “Alongamento”, por exemplo, é um burnout, a pessoa entende que precisa se deixar esfarelar pra voltar. Eu vivi isso, tive um burnout em 2016 sinistro, queria fechar empresa, a banda, desistir de tudo. Foi uma experiência meio transcendental e tem uma parada aí que ela é mobilizatória. Tem horas que a resposta não vai vir racionalmente. O disco inteiro e algumas coisas do “Ousa”, iam nesse lugar como uma plataforma emocional, mas passar isso pra letra é algo que é natural porque já tenho essa vivência. Pra música é mais complicado, cada músico tinha que fazer sua pesquisa, viajar, fazer a curadoria, foi complicado.
Seus discos são conceituais?
Verlindo – O “Ninguém estava aqui” é conceitual. Eu gosto de pensar que a pessoa que ouviu tudo, assimilou e passou a ter uma visão nova seja do que for na vida. Ele foi pensado em cima de uma perspectiva existencial, não era só um conceito. A gente tem vivido uma época de aperto psicológico, emocional, financeiro, sufocamento de violência, necessidades individuais que não são entendidas. Peguei essas frentes e pensei “se eu fosse” endereçar esses assuntos, como faria para unificar essa viagem numa perspectiva só, apesar de ser conceitual, porque é, a viagem é anterior, muito mais na vivência. Queria lançar em 2016 por causa do impeachment, desse ódio injustificável que estamos vivendo, essa incapacidade de se ouvir, tudo isso tem lá no disco.
Você disse que no palco é hiperconsciente. E a sua música, os temas, são complexos, demandam emocionalmente um bocado. Você sai do palco esgotado ou não? Como é a experiência de estar ali se expondo, porque estar no palco é se expor, o tempo inteiro e de maneira muito aberta de coisas muito íntimas e complexas, para uma audiência desconhecida. Como você sai?
Verlindo – Eu saio esgotado sim. Eu e a banda toda. Porque a gente considera missão mesmo. A gente vai lá pra dar o melhor. Não quer passar com 9. A gente fracassa, tem hora que erra, ultimamente tem acontecido pouco, a gente tem entregado uma experiência densa. Mesmo tentando estar contidos, elas reagem. É bom porque sinto que tem reverberação. Sou um cara extremamente CDF com palco, não bebo, não consumo nada, vou careta porque é missão, entregar 100%, sair de lá com 0% de energia. As músicas têm dramaturgia, todas elas. Eu tô me encontrando na forma de entregar corporalmente, está bem melhor do que no início. Então consome muito mas eu acho importante consumir porque não são temas de entretenimento, são vivenciais, a gente vai exaurir uma perspectiva ali. Não vai dar pra ser econômico, preciso chegar até o fim do show com qualidade, uma curva boa, tal, mas não posso economizar energia. Nos momentos que precisa tem que ser entregue.
Você disse várias vezes que não se considera musico, talvez não seja convencional, de sentar, estudar, conservatório, de formação mais técnica tradicional. É isso mesmo? E como não sendo esse músico você avalia que isso contribui ou não para o que você produz?
Verlindo – A banda tem o entendimento de que o fato de eu não ser tão músico contribui para fugir de alguns padrões. Eu tenho um preconceito comigo mesmo, que deveria saber mais de música, mas a vida é muito corrida. Tenho uma expectativa em relação ao meu desempenho musical, porém num tempo mais dilatado do que eu gostaria. Mas eu sou tarado, pesquiso pra caralho, estudo, percebo os arquétipos que existem, catalogo, isso aqui eu quero gerar essa sensação, gravo um monte de coisa, barulho pra caralho, preciso que soe assim. Eu penso no cérebro.
Você não é músico, mas é metódico.
Verlindo – Minha saída é essa. Eu tenho que estudar e ser metódico para chegar lá. Por vir comunicação, em que eu preciso exaurir todas as variáveis de um caminho para produzir, eu faço isso com música. Ouço muita coisa diariamente e catalogo partes que me interessam, faço experimentos em casa, faço cagadas horrorosas, sei que essas cagadas são mãe de alguma coisa que vai me servir depois. A galera junta cria um outro lugar.
Vocês acabaram de lançar um EP esse ano, um single agora, a Adriah foi oficializada na banda. Começaram a circular mais do que esperavam no palco. Como você vê a banda no médio prazo?
Verlindo – Eu tava refletindo sobre isso. Acho que a rotina de circular mata um pouco a rotina de criar. Porque a gente é mega exigente com qualidade, entrega, tem um foco para deixar no lugar certo, isso consome uma energia gigante. Tenho umas criações endereçadas mas que precisam de tempo. Então a gente tem mais datas, fazendo giro em Curitiba, Florianópolis, esse é o norte, quando acabar vamos pegar várias coisas paradas e fechar uma obra. O formato vamos refletir ainda porque estamos num momento meio opressor. O artista tem que lançar coisa todo mês, vários EPS e bla bla bla. Criar uma cadeia produtiva que seja gostosa, tenha sentido e que ela recompense quem vai ouvir no futuro. Temos duas inéditas só em show, já sei para onde o disco precisa ir, mas demanda um tempo, provavelmente de outubro até o ano que vem, de sentar e discutir e se oferecer a oportunidade de pensar junto. A banda funciona muito bem junto e precisa se oferecer esse espaço.
Precisamos de corpos estranhos para lembrar que existe sombra.
Pra fechar: é possível dizer que a Stoyca é um corpo estranho na cena de Brasília? Você se vê assim, vai continuar assim?
Verlindo – Com certeza. Somos um corpo estranho para muita gente, nosso “ethos” e termos comportamentais gera estranhamentos, a estética, o discurso. Eu não sei o que vai acontecer com isso, tenho me dedicado a ser uma pessoa aberta e disponível e capaz de produzir. Tenho encontrado ótimos parceiros, a fim de fazer junto, mas nós continuamos sendo estranhos. Acho que o meu ideal é que a gente apele para os corpos estranhos dentro de cada um, porque ninguém é normal. Temos uma série de doenças, transtornos, dificuldades de estar vivo, de existir no espaço, coisas que merecem acolhimento, identificação, até inclusive holofote. Não dá para o brasileiro ser complexo, diversificado, estratificado, com uma série de sofrimentos, questões lancetadas e artisticamente ser chapa branca, do colarinho branco e fofo. Precisamos de corpos estranhos para lembrar que existe sombra. Seremos sempre corpo estranho, mas a expectativa é encontrar um monte de gente que entenda o estranho assim mesmo.