Texto: Maurício Angelo
Foto de abertura: Jorge Bispo / Divulgação
Fotos do show no SESC 24 de maio: Felipe Giubilei / Divulgação Humanest
Atribui-se a Tom Jobim a frase de que, no Brasil, sucesso é ofensa pessoal. Mas esse é um truísmo questionável. Se há algo que o brasileiro não só tolera como enaltece é o sucesso. Algo muito diferente ocorre com o talento. Especialmente o talento sob certas circunstâncias. Aí, sim, o talento é não só imperdoável, como perseguido e tratado como inimigo.
É o caso de Ed Motta.
É muito fácil detestar Ed Motta por sua arrogância, seus maneirismos, seu deboche, seu sarcasmo, seu elitismo, seu suposto desprezo ao Brasil, e, sobretudo, à média do brasileiro. É fácil porque o brasileiro médio não pode suportar a exposição de sua própria mediocridade.
Vale para o médio e vale especialmente para o estúpido que se acha iluminado, quase uma jabuticaba nossa, embora uma onipresença global.
Há, claro, o racismo brutal, estrutural e grotesco que perpassa toda a arte brasileira e o público, a patota, a confraria, que determina qual arte brasileira é boa ou não, merecedora das loas, dos prêmios, da exposição, das benesses e das graças da patota.
Ed Motta paga, ele sabe bem e já externou isso, por ser um negro altivo, afirmativo, bem diferente da posição subalterna e forçosamente humilde a que se costuma confinar o negro. Por isso Ed é considerado “arrogante”. Um músico que acredita e pratica a competição americana na música, o credo de que o que vale é ser o melhor possível o tempo todo, em todos os ambientes – estúdio, disco, shows, etc – e leva isso como algo sério.
Ed Motta despreza a humildade e não faz questão de esconder isso. A falsa modéstia, ainda, seria apenas uma forma do artista ser aceito e não criar caso com ninguém. O eterno ciclo de tapinhas nas costas e ação entre amigos – não raro da mesma família – típica da música brasileira.
A questão é que Ed Motta tem cacife para desprezar isso.
Começando tão cedo como começou, o primeiro disco aos 16 anos, se deu conta rapidamente que jogar o jogo cobraria um preço muito caro que talvez não estivesse disposto a pagar.
Afinal, estamos falando de um artista que teve o seu último hit nacional, um hit inequívoco, quase 30 anos atrás. Ou seja, a maior parte da sua carreira, com larga margem, foi outra coisa. E não por acaso. Foi uma escolha muitíssimo bem pensada, detalhe a detalhe, típica de um obsessivo compulsivo.
Eu também já tive certo ranço com Ed, certo nariz torcido. Por pura ignorância, claro. O antídoto é simples: experiência, maturidade e repertório para ouvir a sua discografia e reconhecer o talento e o profissionalismo inquestionáveis presentes ali. Com pontos altíssimos, incluindo Dwitza, Poptical, Aystelum (que trinca na sequência, diga-se) e AOR. O único disco que considero fraco é o Piquenique de 2009, talvez uma última tentativa de fazer música palatável para as rádios e…o brasileiro médio.
Mas se em disco fica óbvio o fosso que separa Ed Motta dos seus colegas por aqui, ao vivo esse fosso ganha ares de abismo. Por detestar fazer shows – ainda mais no Brasil – a oportunidade de vê-lo ao vivo é rara. No último sábado, no SESC 24 de Maio em São Paulo, tive essa oportunidade. Os primeiros shows que Ed faz depois da pandemia, registra-se.
E logo fica claro porque Ed Motta é um ET na música brasileira.
Sua obsessão com os detalhes, com cada aspecto da engenharia sonora de um instrumento, da banda, da harmonia do conjunto, do profissionalismo e da seriedade necessária para entregar algo de nível mundial.
Tudo seria muito bom se seguisse apenas esse roteiro, mas faltasse o talento e a capacidade de compor grandes canções. Mas isso não falta e nunca faltou para Ed. A soma dos fatores produz um artista que se destaca enormemente em relação aos seus pares. E eu já assisti a centenas de artistas brasileiros ao vivo, incluindo a maioria dos medalhões.
Por mais descabida que seja a comparação que farei a seguir, a circunstância do último fim de semana permite. Após o show de Ed no sábado, fui ver Tom Zé no domingo, no SESC 14 Bis. Evitarei comentar o nível do show apresentado por Tom Zé em respeito à sua discografia e a idade de um senhor de quase 90 anos. Mas na fila para o Tom Zé, um exemplo da mais pristina estupidez do público médio.
Um hipster sujo malvestido, desses que acha que sabe algo de música, comentava com seus colegas que “Ed Motta não tem repertório algum, zero, nada, só Manuel” e uma risada tosca acompanhava a série de atrocidades que aquela pobre alma ignorante era capaz de produzir.
O típico sujeito que se orgulha da sua estupidez e que explica por que Ed Motta tem tanta preguiça do público brasileiro. A história da sua carreira e a perseguição que sofreu – de gravadoras e do meio artístico – ajuda a entender. Recomendo essa entrevista recente em três partes para quem quiser. Ed dá detalhes sobre sua carreira, seus traumas, as sabotagens que sofreu e como o mercado fonográfico atua para minar a produção artística.
Por isso é importante ter conquistado a independência que conquistou, com controle total da sua arte e da sua obra. Controle é importante para Ed, assim como é para qualquer um que leve a sério o que faz.
No show do SESC, Ed começa já enfileirando hits em português, caso de “Manuel”, “Fora da Lei” e “Colombina”. Todos ótimos, com uma banda afiada, ensaiada e precisa, mas como se quisesse dizer que o público que estava ali para ouvir apenas os hits já poderia se dar por satisfeito, ir embora e não atrapalhar o resto do show.
E o repertório que Ed tem é soberbo, incluindo o último disco, “Behind The Tea Chronicles”, que fica ainda melhor ao vivo, passando por algumas das pérolas buriladas em estúdio – infelizmente muita coisa ótima fica de fora em um show curto, de cerca de uma hora e meia.
A sessão “stand up”, destacando as lives que Ed se habituou a fazer na pandemia e que permanece até hoje, responsáveis por incomodar muita gente, especialmente fãs de artistas suspeitos que não sabem encarar qualquer crítica – Ed elogia muito mais do que critica, se colocar na balança – é interessante porque ao abraçar o personagem debochado que canta canções satíricas da MPB média – “boca de rio/filho de rico” ou “água de coco” – Ed é engraçadíssimo porque ancora seu sarcasmo no mundo real. É facílimo identificar uma infinidade de artistas que se encaixam nos estereótipos que ele ridiculariza.
Ed Motta não poderia fazer outra coisa senão incomodar essa gente e se tornar “persona non grata” em muitas esferas. Afinal, representa a antítese da ignorância medíocre reinante de todo um cenário extremamente preocupado com uma infinidade de coisas, menos com a música e a arte em si.
Ele conquistou o direito, trabalhado ao longo das últimas décadas em discos brilhantes e apresentações de classe mundial, de desfilar a sua arrogância e o seu sarcasmo como bem entender.