Por Maurício Angelo
E não foi sempre assim?, pode perguntar o leitor. Sim e não. De um lado, essa gostosa confraria de queijos e vinhos (ou conhaque, pra cair no gosto dos rappers wannabe ostentação) sempre existiu, é verdade. Aquele compadrio típico da sociedade brasileira que a música, como bom passatempo das elites enquanto produção cultural embalada e referenciada, acompanha. Já vejo flamejar os olhos de quem adora sacar a suposta “carta dos de baixo” enfurecidos. E o rap? O funk? O brega? O popular popular de verdade? Calma que na geleia geral da indústria 3.0 não falta farinha enriquecida pra todo mundo. Taí o Kondzilla que não me deixa mentir.
Mas até outro dia (menos) e na primeira metade do século (bem mais) nós tínhamos uma verdadeira saraivada de ótimos críticos, de revistas independentes, de analistas brilhantes, de nomes que não aliviavam a mão mesmo entre amigos. Tudo que se entende como crítica cultural no Brasil tem nessa turma – e não carece brincar de name dropping aqui, vá atrás – sua referência. Falo de literatura, sobretudo. E cinema. E artes plásticas. A música sempre foi outro departamento, o do entretenimento dos salões festivos e esfumaçados. As pessoas só querem se divertir, porra. Ou chorar suas dores de amor através de gente mais talentosa e competente para fazê-lo.
Ultraprocessada pela indústria cultural que qualquer criança de 5 anos deve conhecer bem, na teoria e na prática, a coisa tem piorado pela precarização infinita do animal de carga conhecido como jornalista. Raríssimos veículos pagam por crítica musical no Brasil que parece moderno. E cada vez menos. E estes veículos que pagam, justamente por precisar se comprometer com seus patrocinadores e a agradar ao máximo o público – fãs – de artistas, que vão consumir o seu produto, não estão muito dispostos a criar caso com ninguém. Deixa disso, dá cá um abraço. Vamo tirar essa foto pro Instagram.
Em suma: enquanto agonizávamos não sobrava muita coisa. No meio dos escombros, resta meia dúzia de sites (como este) que são projetos pessoais de quem, por azar, burrice ou teimosia, não consegue largar o osso. Pessoalmente, prefiro assim: embora tenha atuado profissionalmente como jornalista cultural em outras searas, a Movin’ sempre foi meu cavalo de batalha particular. Ser amigo de todo mundo é um trabalho sujo que não quero e nunca quis. Ser amigo de músico é pior ainda. Desesperados em aparecer e ganhar público nesse meio transformado em prostituição digital, vale tudo.
E a crítica não tem lugar na “cena”, essa palavrinha fetiche. Pra valorizar a “cena” só interessa o tapinha nas costas, o elogio barato, o oba oba, o sorriso largo e a assessoria de imprensa. Crítica é coisa de gente chata e implicante que não tem mais o que fazer. E o artista, esse abnegado, esse marginal que luta contra tudo e contra todos para ter seu trabalho, sua criatividade, sua originalidade, sua inspiração e seu suor reconhecido, não merece pedras.
Nas armadilhas dos extremos parece só existir duas opções: ou a crítica-release, o texto laudatório do jovem empolgado que acha que o mundo começou ontem, o crítico preguiçoso, o copia-e-cola de site gringo, a ação entre amigos ou a iconoclastia de boteco caro de SP, o falar mal pra chamar atenção, o polemista caduco, o ser do contra para ser ouvido. É penoso viver nesse mundo de simplificação. Não por acaso um youtuber idoso aloprado exilado nos EUA é hoje a maior “referência cultural e política” do país. Tristes trópicos.
Lutar contra a nostalgia é sempre uma tarefa ingrata. Na música e no jornalismo, mais ainda. Já escrevi sobre isso inúmeras vezes aqui. Contra a nostalgia (2013), o frisson indie (2010), o descolamento da realidade (2012), o oba oba “independente” (2010), o jornalismo chapa branca (2013), a imitação de música (2010) e, mais recentemente, sobre como o gosto popular incomoda muita gente (2016), Elza Soares e a representatividade enquanto nicho de mercado (2018), e sobre Donald Glover e a lacração (2018). E também contra esse clima gostoso de união que não sobrevive até o primeiro ego ferido por coisa besta. Tarefa ingrata, permanente e necessária. Mas há quem prefira miojo e quetais. Sempre haverá. Rápido, fácil, mata a fome e não tem erro. Ou esse eterno júbilo que vive a música brasileira. Intensa! Plural! Representativa! Um mundo de exclamações também conhecido como histeria.
Se o crítico despreza a crítica, por que o público não deveria fazer o mesmo?
Em termos críticos, a música é, disparada, o meio menos intelectualizado quando comparada ao cinema e a literatura. Cada dia mais os críticos parecem incapazes de propor qualquer coisa que não o óbvio ululante, a validação rasa de gostos e impressões, as micro implicâncias e preferências. Há mesmo um desprezo pela crítica dos próprios críticos. Um desprezo crescente sobre a atividade crítica que parece um canibalismo de oportunidade, antropofagia estéril.
Somente nos primeiros textos dessa lista de 50 melhores da RS (o tipo de coisa que tem a única função de agradar o ego do júri e manter política de boas relações com os artistas) encontrei os seguintes termos:
“poderoso” (algumas vezes); bem servido; “fazem os olhos se encherem de lágrimas”; “canções cheias de lembranças, calientes e saudosas”; amadurecido; “emotivo e futurista”; “arrombo pop dos bons”; “um disco cheio de alma”; “cancioneiro impecável”; “potencial enorme”; “cristalina, delicada e festiva”; impressionante; fulminante; magistral; consistente; destemido; genial; contemporâneo; “fluído e cristalino”; versos afiadíssimos; autêntico; corajoso; complexo; viciante”.
Parei no 30º lugar porque não tenho estômago para tanto. Se estamos tão cercados de gênios absolutos, abre aspas, “como se ensinassem ao mundo como tudo deveria ser”, imagina realmente o que acham da “nata” do ano?
A Rolling Stone, que sempre foi um catálogo comercial permeado com alguma crítica e reportagens imensas para jornalista ler, hoje é só catálogo. Não é exclusividade dos colegas aí: eu também já escrevi uma infinidade de baboseiras em 15 anos de “crítica” musical. Certamente mais textos vergonhosos do que consigo contar. A despeito da muleta de lá no início ser moleque, elogiar é sempre muito fácil. Não se mexe em vespeiro algum, joga-se meia dúzia de adjetivos, de clichês intermináveis e todo mundo sai feliz.
Defenestrar também é mole. Ou usar uma furadeira para destruir discos, como fazia a turma do Garagem. Chocante, né? Entre o “genial” e a “merda”, no entanto, escrever crítica é um negócio um tantinho assim mais trabalhoso. E não precisamos voltar para a época em que uma banda como o Titãs ia em redação de jornal chamar jornalista pra porrada por não aceitar uma crítica negativa que recebeu (sim, aconteceu). Saudosismo estúpido é mais terrível que a fragilidade do ego da turba.
A crítica negativa é vista como um incômodo indesejável, com um custo pessoal muito alto para se chegar a tanto. A geração ironia também não se ajuda. A noção infantilizada de que escrever sobre algo já é um atestado de importância que aquilo tem. Sem falar na mera replicação de notícias, de escolhas e de textos influenciados por sites e publicações gringas. É muito mais fácil copiar o eixo central de uma crítica da Pitchfork, por exemplo, do que pensar por conta própria. Os artistas validados são os mesmos, as linhas argumentativas se parecem.
Trata-se, sobretudo, de uma geração de músicos e jornalistas extremamente mimados e cretinos. Que não suportam ouvir um não. Criados em um meio condescendente, saídos em série das mesmas fábricas, com os olhos brilhando para fazer parte “do meio”, em posar entre celebridades, “circular”, em tirar uma lasca perdida de um suposto “sucesso” que seja. Afinal, é preciso garantir uma boquinha com os patrocinadores. Seja no Multishow, no Bis, na Vice, seja com a Red Bull, a Natura, o Rock In Rio ou qualquer outro. É preciso falar de tudo ao mesmo tempo sem ter a mínima noção sobre o que se fala para engordar pageviews e catar uns “jobs”, a lógica de 99% dos sites brasileiros do ramo. Qualquer prazer satisfaz.
A turma do rap, por exemplo. No Brasil e no mundo, o rap é hoje o que existe de mais “quente”. Na música e na cultura, o rap domina. E com méritos. Mas será que, no Brasil, os rappers, tão acostumados a serem bajulados permanentemente, estão prontos para receber críticas? Eu mesmo elogiei bastante alguns discos de rap do ano passado. Infelizmente, no entanto, Djonga voltou com um disco fraco em sequência e Diomedes Chinaski lançou um disco horroroso, um trap vagabundo e intragável de letras sofríveis – aparentemente adorado por todo mundo.
E o que dizer de Baco Exu do Blues? O garoto é bom, chegou chegando com “Sulicídio” e emplacou um “hit de nicho” com “Te Amo Disgraça”. Aos 22 anos, no entanto, já foi recebido como mais um gênio ao colocar na praça “Bluesman”. “Uau, um conceito! Que capa! Que clip! “Empoderamento” negro! “Mestre!”. Não importa que contenha músicas tão ruins e dignas de vergonha alheia como “Desculpa Jay Z”, “Girassóis de Van Gogh” e “Kanye West da Bahia”. Discurso e prática não se sustentam. A turma do rap – os jornalistas bajuladores, os próprios artistas e cia ltda – se comportam exatamente como aqueles que gostam de tripudiar: como gangue acéfala que “defende os seus”, que recebe cada lançamento com histeria insuportável, um mundo fodão em que tudo é “excelente, espetacular, incisivo, necessário, histórico, lendário”. Não há espaço para dissidência. “É a hora de tomar de assalto”. E dá-lhe frases de efeito e uma necessidade desesperada de “acontecer”. Divertido.
No rap e fora dele, o meio musical brasileiro se tornou isso aí. Um universo encantado em que todo mundo é amigo de todo mundo – exceto se for pra “causar” e chamar atenção, caso de “Sulicídio”. Um séquito interminável de bajulação, oba oba, lacração e compadrio. Nenhum diálogo, nenhum contraponto, nenhuma capacidade de olhar para o próprio umbigo com o mínimo de crítica e um sufocamento permanente do contraditório, não deixando sequer espaço para que ele aconteça.
Paradoxalmente, embora não admitam, uma postura em tudo alinhada com o presidente eleito que nos governará a partir de janeiro de 2019. Boa sorte com isso.