Ninguém é estúpido o suficiente para tentar manchar o lugar de Elza Soares como testamento vivo da música brasileira, uma das mais poderosas vozes que esse país já viu desde “A Bossa Negra”, de 1961, passando pelo retorno com o ótimo “Do Cóccix Até o Pescoço”, de 2002 (um disco que merece mais atenção do que já recebeu). Ninguém é calhorda o bastante para negligenciar a história de vida de uma mulher que passou por mais desgraças e calamidades do que boa parte de nós juntos.
E quase ninguém discorda que “A Mulher do Fim do Mundo” é um belo disco, teve um impacto tremendo, colocou Elza de volta nos holofotes, nos palcos, aclamado por crítica aqui e fora do Brasil e por público ávido em ver aquela mulher – aquela entidade – sentada em seu trono real, simbologia fortíssima em letras idem, trabalhadas justamente para causar o impacto que causaram em músicas que se tornaram hinos imediatos como “Maria da Vila Matilde” e “Pra Fuder”.
Havia ali o impacto inestimável do novo, do choque, do desafio, da representatividade em ver alguém como Elza, acima dos 80 anos, cantando frases como “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, “olho pro meu corpo sinto a lava escorrer” ou “bem que o anão me contou que o mundo vai terminar num poço cheio de merda / quem tem cadarço não sobra” (em reinterpretação direta de “O Bandido da Luz Vermelha”). Poucos discos foram tão bem-sucedidos em exalar empoderamento feminino, em dialogar com o público ávido por mensagens como essa, em casar letra com música bem pensada, bem gravada e bem executada. Ainda que tudo isso tenha sido entregue praticamente pronto para Elza por compositores homens. Um paradoxo em si? Talvez.
Ninguém discute a competência da turma dessa “nova vanguarda paulista” que passou a cercar Elza, verdadeiros think thanks do independente brasileiro na última década – Kiko Dinucci, Rómulo Fróes, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Cacá Machado, Clima, Thiago França, Guilherme Kastrup e cia ltda – com um protagonismo alcançado capaz de gerar ciúmes em outros músicos de outras regiões, incomodados com a quase unanimidade crítica, os holofotes, as loas, a eterna questão do espaço demasiado ocupado pelo eixo Rio-SP e por aí afora. Feridas abertas que se supõe cicatrizadas em 2018, mas que na verdade nunca foram superadas. Faz parte do jogo.
Assim, é natural que essa turma esteja toda de volta no novíssimo disco e cercado de expectativas “Deus é Mulher”. Desta vez, no entanto, Elza tem celebrado o quanto participou de toda a produção e composição, desde as 60 músicas (!?) iniciais apresentadas por Kastrup e a busca em trazer a maior participação de mulheres nas composições, caso de Tulipa Ruiz, do grupo Ilu Obá de Mim, Alice Coutinho e Mariá Portugal, embora o núcleo duro tenha sido mantido.
Perdido o trunfo do impacto do disco anterior, “Deus é Mulher”, por mais orgânico que seja, por mais que tenha mais mulheres presentes, por mais que o processo e o envolvimento seja diferente, soa mais artificial, mais embalado para consumo imediato da “indústria da lacração”, mais pensado exatamente para acionar os mesmos botões para o mesmo público, mais ciente do que dizer, quando e para quem dizer, mais profissionalmente executado para suscitar a recepção que sabe que vai ter. O senso de urgência é compreensível. Afinal, na idade de Elza, com a saúde fragilizada, o dia de amanhã é sempre uma incógnita. E há quem goste justamente por isso: o fato de Elza estar viva, gravando e se apresentando é tão improvável que, por si só, vale a celebração.
E aí perde-se muito da beleza, da espontaneidade – alguma vez presente? – do impacto que “Banho” e “Eu Quero Comer Você”, por exemplo, explodindo em sexualidade de uma mulher negra beirando os 90 anos, da mulher enquanto dona do seu corpo, dos seus desejos e das suas regras, mas que soam como decalques óbvios e diretos de “Pra Fuder”. Exatamente a mesma pegada, os mesmos temas e a mesma necessidade de afirmação em letras como “quando tá seco logo umedeço / eu não obedeço porque sou molhada / enxáguo a nascente e lavo a porra toda / pra maresia combinar com o meu rio, viu / minha lagoa engolindo a sua boca / eu vou pingar em quem até já me cuspiu, viu”. Se “Banho” tem tudo para virar ‘hino’ em shows instantaneamente, “Eu Quero Comer Você” também não deve fugir muito ao roteiro, apesar da letra adolescente, da provocação boba, da afirmação claudicante – entre 60 canções esta era uma das melhores?
É nessa interseção que a lacração atinge seu auge enquanto nicho de mercado. São paradoxos inevitáveis – e a première do disco foi no Hotel Fasano, reduto da grã-finagem paulista. Elza e a turma, no entanto, são competentes. O disco, bom, fica abaixo do antecessor, justamente por insistir na repetição de temas prontos pra lacrar e no instrumental, mais do mesmo, ainda que “ensolarado” e menos “dark”, segundo Elza tem afirmado em entrevistas.
“Exú Nas Escolas” talvez seja a melhor delas: “As escolas se transformaram em centros ecumênicos / Exu te ama e ele também está com fome / Porque as merendas foram desviadas novamente / Num país laico, temos a imagem de César na cédula e um “Deus seja louvado” / As bancadas e os lacaios do Estado / Se Jesus Cristo tivesse morrido nos dias de hoje com ética / Em toda casa, ao invés de uma cruz, teria uma cadeira elétrica” canta Elza.
Representatividade importa. O Brasil é o lugar de fala de Elza, despejando logo no início palavras-chave para o público “meio intelectual meio de esquerda”, meio engajado meio oba-oba. Tudo que faça com que o Brasil assuma seu DNA profundamente negro, que questione o racismo estrutural, a misoginia, o machismo, a homofobia, a desigualdade, é bem-vindo, verdade. Pesando a mão ou não, incorrendo em repetições e armadilhas que se anunciam a quilômetros de distância, Elza & Turma acertam mais do que erram. Infelizmente nem todos tem essa capacidade.
Lacrar dá lucro
Os artistas perceberam rápido que “lacrar” é ótimo negócio. Levantar certas “bandeiras” é garantia de penetração imediata em um público – sobretudo feminino e LGBT – carente de representação, alijado do seu “lugar de fala”, historicamente escamoteado para os rodapés, agora alçados a protagonistas. Tudo muito válido, mas que não raro é usado por gente pouco talentosa para atingir o nervo certo e lucrar com essa carência.
Qualquer um é capaz de ver que o público está pouco preocupado com mérito artístico. Antes, vale lacrar, entreter e representar. Todo mundo passa a gostar imediatamente, compartilhar trechos de letras com viés de indireta em rede social, se sentir parte de algo maior – “olha que foda, lindíssimx, falou tudo”, “rainha da porra toda”. E quem engrossa o coro dos descontentes é logo execrado, ridicularizado, perseguido, ironizado e acusado – “feministo”, “esquerdomacho”, “male tears”, etc, depende da ocasião, do alvo e do freguês. A indústria da lacração é muito eficiente em se proteger.
Pablo Vittar é um artista limitadíssimo, de músicas de qualidade no mínimo questionáveis – mas sem dúvida foi o maior personagem de 2017. Uma coisa não elimina a outra. Anitta, alçada a rainha da emancipação feminina por mostrar sua bunda com celulite na abertura de um clip que se tornou viral (clip este dirigido por um assediador serial como Terry Richardson) não foi capaz de manter sua suposta posição ao se calar no assassinato de Marielle Franco (prontamente cobrada por seu público), mostrando o que qualquer um era capaz de ver: que só se compromete até certo ponto – até o ponto que não prejudique a sua possibilidade de lucro e de alcance.
Liniker é bom mesmo ou só foi amado por ser quem é? Desconfio da segunda opção. As Bahias e a Cozinha Mineira, Rico Dalasam (já comentado aqui), Linn da Quebrada, Gloria Groove, Aretuza Lovi, Ventre, Jaloo, Johnny Hooker, Karol Conká, Letrux, Francisco, El Hombre, até casos como os do Apanhador Só, pegos em sua ânsia de ser “feministo”, levados na enxurrada do linchamento de reputações, revelados como abusadores internet afora e que gerou até uma “lista de artistas a evitar”.
São muitos os caminhos da lacração e da representatividade, que podem vir ou não acompanhados de competência musical e mérito artístico, por gente muito diferente que aposta em narrativas semelhantes. A “música tombadora brasileira” é a grande bola do mercado – independente? alternativo? – nos últimos tempos. Ela vai bem, obrigado, ao mesmo tempo que fissuras começam a aparecer e o público, lentamente, muito lentamente, começa a se questionar: será que aquilo que parece ser realmente é?
Voltemos a Rogério Sganzerla, cineasta que revolucionou o cinema brasileiro com “O Bandido da Luz Vermelha” com sua ambientação na Boca do Lixo e que serve de referência para a turma de Elza – a mesma turma que “lacra com moderação” em seus trabalhos solo – e homenageado em música em “A Mulher do Fim do Mundo”. O que Sganzerla tem a ver com tudo isso? Bastante coisa. Em manifesto na época do “Bandido…”, afirmou:
Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo. Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.
As semelhanças com as ambições da turma que cerca Elza são evidentes. Sganzerla era o pós-Cinema Novo saindo das entranhas do Cinema Novo, colocando o dedo no olho do Cinema Novo. E qual foi o filme de Sganzerla pós “Bandido…”? “A Mulher de Todos”, de 69, com Helena Ignez – ou Angela Carne e Osso no personagem – “insubmissa e irascível”, a devoradora empoderada mor da arte brasileira, o paradigma absoluto de libertação da fêmea no cinema e na cultura brasileira de então, em filme e interpretação até hoje nunca superadas. Sganzerla e Ignez fizeram questão de entregar o que entregaram: o protagonismo feminino decisivo e ameaçador, a bacante que estraçalha o patriarcado e vai à praia.
Sete anos antes o cenário era muito diferente. Nada mais anti-Sganzerla que “Os Cafajestes” de Ruy Guerra, de 62 – “um filme burguês com fotografia nouvelle vague”, como provocou Glauber Rocha à época – em que Norma Bengell, no primeiro nu frontal da história do cinema brasileiro, é emboscada e humilhada pelos dois playboys interpretados por Jece Valadão e Daniel Filho em longos minutos de um plano sequencia no mínimo polêmico. Humilhada para que os dois pudessem ter lucro em cima da sua nudez. Vista hoje, a cena gera um incômodo inegável, apesar do brilhantismo técnico e do pioneirismo.
Sganzerla e Ignez passaram o trator por cima disso. Assim como a turma que cerca Elza e todos os artistas brasileiros que apostam hoje na “lacração” e na “representatividade” almejam fazer, independente da autenticidade, da competência artística, da capacidade em entregar boa música além da mensagem empoderadora.
Processada e cooptada pelo mercado – como sempre é, em um filme bem antigo conhecido por todos – sobreviverá a lacração à sua primeira primavera crítica ou vale tudo e sobra apenas a sede por entretenimento e congregação em torno de sentimento de pertencimento e triunfo, vazio ou não? Nesse campo de incertezas, desconfio que muita gente continuará a se enganar com o artista favorito da vez, aquele que repetidamente conseguir apertar os botões de recompensa certos, suprir a carência do jeito esperado, na hora adequada – antes que o cansaço venha.