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Morte de fã de Taylor Swift no Rio escancara que a crise climática é uma realidade inescapável também para a cultura pop e muito precisa mudar

Foto de destaque: Alexandre Cassiano / Agência O Globo

O mundo e o Brasil foram pouco a pouco, bem mais lentamente do que recomendava o bom senso, sendo obrigados a admitir que sim, a crise climática é real e imediata, os eventos extremos se acumulam, repetem e variam com frequência assustadora, as perdas de vidas humanas se multiplicam, as migrações forçadas se impõem e o dano material e econômico está na casa dos trilhões.

A cada dia fica pior. Sim, a ciência não só estava certa como foi conservadora nas previsões sobre o ritmo do desastre. 2023, o ano mais quente da história humana, coloca o ponto final no negacionismo, nas desculpas esfarrapadas, nos acordos desrespeitados, nas metas fajutas, no discurso empolado e no faz de conta das negociações multilaterais para escancarar que o colapso quase inevitável é aqui e agora e muita, muita coisa precisa mudar para ontem.

Ou deveria.

Do Acordo de Paris, em 2015, para hoje, as metas firmadas continuam mais uma vez flanando no mundo da fantasia enquanto o planeta arde, queima, derrete, inunda e eventos extremos passam a fazer parte do cotidiano, afetando rigorosamente todos os aspectos da vida.

A cultura pop não é exceção.

Ana Clara Benevides, 23 anos. Foto: Reprodução

E é pesaroso que esse lembrete venha da forma mais cruel possível: pela morte de uma fã de Taylor Swift, Ana Clara Benevides, 23 anos, que, ao desidratar na grade do show no Rio de Janeiro com sensação térmica de absurdos e inomináveis 60 graus celsius, não resistiu e, socorrida, faleceu. Não consigo imaginar consolo aceitável para os pais e a família de Ana Clara.

Mas conheço bem o contexto que permite que uma tragédia como essa aconteça. Há uma cadeia ampla de fatores para chegarmos a isso.

Não são poucos os episódios globais de festivais e grandes shows que se transformaram em desastre completo nas últimas décadas. Exceções, porém, diante das dezenas de milhares de eventos. Que se tornam mais críticos e perigosos no contexto climático atual.

No Brasil, porém, de um Sul Global tratado pelo que eu chamo de cloaca do capitalismo, onde o absurdo mais absurdo é sempre permitido e normalizado, o mesmo absurdo que quase nunca acontece nos países do Norte, a coisa é pior. E não por acaso.

Grandes shows e festivais no Brasil sempre partiram do pressuposto de que é preciso extorquir o máximo possível o público, oferecer a pior experiência imaginável e cometer abusos mil. Tudo normalizado por fãs, empresas, artistas, patrocinadores, imprensa e poder público.

Isso inclui proibir o acesso ao evento com água e, longe de fornecer água gratuita, produtores cobram R$ 8, R$ 10 ou mais por uma garrafa de água que, além do custo, implica muitas vezes em enfrentar filas gigantescas e sair do lugar em que se encontra para assistir o seu artista preferido. No caso da grade, onde Ana Clara Benevides estava, ainda mais. Fãs chegam a acampar por dias ou semanas na fila de shows para ficar o mais perto possível do seu ídolo. Ou seja, na grade.

Fãs de Taylor no RJ. Foto: Eduardo Anizelli / Folhapress

E comprar água ali não é uma opção, além do risco de esmagamento, ser pisoteada em caso de emergência e desespero generalizado e o calor excessivo que as pessoas acabam se submetendo, espremidas entre milhares de outras pessoas e a céu aberto em uma semana que o Rio de Janeiro e outras regiões do Brasil passam por nova onda de calor extremo.

Notícia sobre o episódio diz que a sensação térmica registrada no local, repito, chegou a 60º C – algo que até outro dia era raríssimo e registrado apenas nos locais mais quentes da– e os bombeiros contabilizaram cerca de mil desmaios durante o show de Taylor Swift nesta sexta (17). Nas redes, fãs reclamaram da proibição de entrada com garrafas d’água no estádio, praticamente uma regra em grandes shows e festivais. Os relatos são de negligência.

Mil pessoas desmaiaram, extraoficialmente. De um público de 60 mil pessoas. A cada 60 pessoas, 1 desmaio. Bombeiros também relataram que muitas pessoas vomitaram por causa do calor elevado e da desidratação.

Ana Clara Benevides teve duas paradas cardiorrespiratórias após passar mal pelo calor extremo. A jovem estudante de psicologia que saiu do Mato Grosso do Sul para realizar o sonho de ver Taylor Swift no Rio de Janeiro, morreu.

“Perdi minha única filha, menina feliz, inteligente. Estava para se formar em psicologia em abril próximo, guardando dinheiro. Não tenho palavras para expressar minha dor. Saiu de casa para realizar um sonho e volta morta”, disse o pai de Ana à Folha.

Sabe-se, há no mínimo uma semana, que estados como RJ, SP, MT, MS e MG passariam por recordes de calor, situação extraordinária que caminha rapidamente para, longe de exceção, “virar o novo normal”.

Onda de calor extremo em curso no Brasil. Reprodução MetSul.

Taylor Swift publicou uma mensagem nos stories do seu Instagram lamentando a morte de Ana Benevides para os seus 276 milhões de seguidores.

“Eu não posso acreditar que estou escrevendo essas palavras, mas é com meu coração devastado que eu digo que perdemos uma fã no começo desta noite […]. O que eu quero dizer agora é, sinto muitíssimo pela perda e meu coração partido está ao lado da família e dos amigos. Esta é a última coisa que se quer pensei quando decidi trazer esta turnê ao Brasil”, escreveu a cantora.

A Time For Fun (T4F Entretenimento), uma das maiores produtoras de eventos do Brasil e da América Latina, até o momento apenas lamentou a morte de Ana. Nenhuma palavra sobre as condições oferecidas para o público, o calor excessivo e medidas que pode e deve tomar, inclusive para os próximos shows.

O ingresso mais caro para o show de Taylor Swift no Rio de Janeiro custou R$ 950 para a pista premium, mais próxima do palco e R$ 2250 para o “pacote VIP”.

A turnê internacional “The Eras Tour”, de Taylor Swift, que começou em março de 2023 nos Estados Unidos e terminará em Londres, em agosto de 2024, deve gerar vendas de impressionantes US$ 2 bilhões (R$ 10 bilhões), a turnê de maior bilheteria da história, segundo a revista Pollstar, especializada na indústria da música.

Só no Brasil, estimativas apontam que a turnê de Taylor deve movimentar no total algo em torno de R$ 400 milhões de reais.

Estamos falando, portanto, de um colosso da cultura pop, de uma das artistas mais bem-sucedidas que o mundo já viu e, claro, do enorme séquito de empresários, produtores, vendedores, marqueteiros e demais oportunistas que lucram com a carreira de Taylor Swift.

Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo

Uma artista pop desse calibre tem muito poder. Em um mundo baseado na cultura da influência, mais ainda. Seja para as centenas de milhões de seguidores em redes sociais, seja nos milhões de fãs que ouvem os discos, vão aos shows e compram os materiais, até na política em si, Taylor Swift tem muito, muito poder e dinheiro. Não por acaso teve empresa de mídia que nomeou até um “setorista” exclusivo para Swift.

Entre as exigências de Taylor para os shows no Brasil, constam, entre outras: 100 garrafas de vinho de luxo e 100 garrafas de champagne, cristais Swarovski e, veja só, 300 garrafas de água pura e gaseificada.

Passou da hora para que artistas como Swift comecem a exigir, também, condições minimamente humanas, adequadas e confortáveis para o público que sustenta a sua carreira e vai aos seus shows. Vale para Taylor Swift e para todo grande artista de qualquer estilo musical em qualquer lugar do planeta. Água é um direito. Segurança não é um favor. Crise climática não é brincadeira.

A despeito do fato de que os fãs ensandecidos da cantora não gostarem muito de interpretar texto (algo comum aos fãs em geral) e se prontificarem a assediar, perseguir, trollar, expor e infernizar a vida de qualquer um que faça um comentário razoável sobre o seu ídolo, esse fato extrapola muito o mundo dos “swifties”.  

Pessoas estão perdendo a vida porque a engrenagem multibilionária da cultura pop não se importa em tratar o seu público – os clientes / fãs – com o mínimo de dignidade e, assim como os países, políticos, empresas e atores que permeiam as mesas de negociações climáticas, ignoram as adaptações urgentes e necessárias para um planeta que não é mais o que era antes.

Produtores, organizadores e poder público no Brasil e em qualquer país, locais, estaduais e federais, sem dúvida tem muita responsabilidade no cenário. A mídia, cooptada, comprada e vendida, incapaz de cobrir cultura com o mínimo de crítica e agindo sempre como assessoria de imprensa de quem paga mais – com raras exceções – também. Tem um quinhão para todo mundo.

O governo federal, pelo menos, tratou de se mover. Flávio Dino, ministro da Justiça, publicou há pouco no Twitter que “a partir de hoje, por determinação da Secretaria do Consumidor do Ministério da Justiça, será permitida a entrada de garrafas de ÁGUA de uso pessoal, em material adequado, em espetáculos. E as empresas produtoras de espetáculos com alta exposição ao calor deverão disponibilizar água potável gratuita em “ilhas de hidratação” de fácil acesso. A medida vale imediatamente. A Portaria será editada em, no máximo, 1 hora. Será postada aqui para conhecimento dos detalhes. A Secretaria Nacional do Consumidor tomará as providências cabíveis para a fiscalização, com a colaboração dos Estados e dos Municípios, bem como atuação da Polícia, se necessário”. Antes tarde do que mais tarde.

Do Acordo de Paris, em 2015, até o início de 2022, os 60 maiores bancos do mundo investiram nada menos que US$ 4,6 trilhões de dólares em projetos de petróleo, gás e carvão. Exatamente o oposto do que precisamos para evitar o colapso climático.

Vai piorar: até 2030, países planejam o dobro da produção de combustíveis fósseis permitida pelo Acordo de Paris, 110% além do que seria necessário para limitar o aquecimento a 1,5°C.

Das metas de redução de 43% das emissões dos países até o fim da década – as NDC’s e planos climáticos nacionais – apenas 2% deve ser atingido, “pequena diferença” de 41%, acaba de alertar a ONU.

Outro dado bem quentinho para compor o cenário: pela primeira vez na história, as concentrações médias globais de CO2 ficaram 50% acima da era pré-industrial. A Organização Meteorológica Mundial (OMM), alerta que “não há fim à vista” para essa tendência.

Mais uma COP está chegando e tudo que foi desrespeitado até aqui nas últimas décadas estará de novo na mesa de negociações intermináveis, questionáveis e insuficientes.

Dezenas de milhares de pessoas aglomeradas para shows sob calor extremo, largadas à própria sorte e pagando muito caro para correr risco de vida, sem o mínimo de dignidade, suporte e planejamento, é a receita certa para desastres recorrentes que a sociedade do espetáculo da cultura pop tem flagrantemente ignorado até aqui.

No caso de shows, porém, os ajustes necessários para que um quadro tão terrível comece a mudar e tragédias como a morte de Ana Clara Benevides sejam evitadas é algo muito mais simples e possível do que reverter a máquina global da crise climática alimentada pelo capitalismo verde, consciente e sustentável.

Em ambos os casos, no entanto, toda uma cultura precisa mudar. É provável que não estaremos mais aqui se e quando isso acontecer.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

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