Texto: Marcus Reinaldo Thompson
Fotos: Bárbara Moreira
Na noite chuvosa de 26 de outubro, a casa de shows Autêntica em Belo Horizonte foi invadida por uma tempestade sonora única, cortesia do lendário Black Flag. O grupo, parte integrante da programação do evento promovido pela produtora Música Quente, ofereceu aos espectadores uma viagem no tempo, mergulhando no vasto oceano de sua discografia entre 1979 e 1985.
Sob os holofotes, a formação atual da banda, liderada pelo icônico Greg Ginn, demonstrou uma energia incansável, recriando a intensidade crua que marcou sua era áurea. Durante duas horas de pura catarse musical, o Black Flag desencadeou uma série de clássicos atemporais, invocando a selvageria punk de “Damaged” e “My War” com uma urgência que parecia resistir à passagem do tempo.
“My War” é um marco na música pesada, considerado uma das principais influências no surgimento do , -. Foi quando a banda passou a realizar experimentações deixando seu som mais lento e pesado, além de usar variações tonais e de tempo. O disco foi tocado na íntegra em BH.
O dilúvio que caía do lado de fora parecia ecoar na selvageria dos riffs de Ginn, enquanto a plateia dançava freneticamente em uma celebração repleta de paixão e nostalgia. O público, composto por fãs locais fervorosos e muitos que enfrentaram estradas escorregadias vindos de outras cidades para estar lá, testemunhou não apenas um concerto, mas uma jornada pelo legado de uma banda que moldou o punk como o conhecemos.
A atmosfera na Autêntica foi eletricamente carregada, com a multidão absorvendo cada acorde como uma relíquia do passado – não empoeirada, mas reluzindo satisfação sonora suja e atitude punk legítima, ao contrário da maioria das bandas de hoje. A seleção de faixas abrangeu desde os hinos encurtados do início até os experimentos mais longos e escuros de meados da década de 1980, oferecendo um panorama abrangente da evolução sonora do Black Flag.
O show ajuda a entender por que a banda foi uma das principais influências de Kurt Cobain ao criar o Nirvana. O Black Flag foi o primeiro show punk que Cobain assistiu, aos 17 anos.
O impacto da banda em Kurt foi tão grande que, quando ele e Krist Novoselic publicaram um anúncio procurando um baterista, o Black Flag era a primeira referência musical citada e os dois discos do BF já citados constaram na lista dos 50 discos favoritos de Cobain.
Além do Nirvana, o Black Flag influenciou toda a geração que fez do grunge o estilo dominante da primeira metade da década de 90. No livro “Come as you are: the history of Nirvana”, Michael Azzerad conta que no mesmo show em que Kurt teve seu primeiro contato com o Black Flag também estavam presentes Chris Cornell e Kim Thayil (do Soundgarden), integrantes do Screaming Trees (que seria formado no ano seguinte) e a banda de abertura era o Green River (que mais tarde se dividiria, dando origem ao Mudhoney, Mother Love Bone e Pearl Jam).
Nessa noite chuvosa em BH, o Black Flag não apenas reviveu sua era de ouro, mas também reafirmou sua relevância duradoura no cenário musical, mostrando que, mesmo décadas depois, sua música continua a ser um vendaval incontrolável que deixa uma marca indelével.
Ginn, um maestro dissonante, guiou a narrativa tumultuada da banda, desencadeando uma cacofonia de distorção que transcendia a própria chuva que caía do céu. Os fãs, alheios às condições climáticas adversas, estavam envolvidos em um frenesi profundo.
Mas a noite não terminou com o rugido do Black Flag; em vez disso, mergulhou ainda mais fundo na obscuridade com o Falsa Luz. Este quarteto claustrofóbico, emanando influências de death metal e punk lo-fi, desencadeou uma experiência sonora única, mergulhando o público em um abismo de distorção. O jogo de luzes sombrias transformou o ambiente em um pesadelo sensorial, onde o caos reinava supremo.
Ao longo de sua performance, o Falsa Luz construiu uma parede sônica que sugou o público para um labirinto de ruído visceral. A fusão de elementos de death metal e punk lo-fi criou uma estética sonora que desafiou convenções e prendeu os ouvintes em um frenesi visceral. As luzes, reminiscentes de um pesadelo neon, adicionaram uma camada extra de desconforto, criando uma atmosfera que era ao mesmo tempo hipnótica e aterradora.
O evento não era apenas uma festa para os ouvidos, mas também para o meio ambiente. Copos especiais foram concebidos para o evento, uma tentativa consciente de reduzir o lixo gerado. Um gesto pequeno, mas significativo, em meio à explosão sonora e visual que caracterizou a noite. Além disso, o cartaz do evento, uma obra de arte em serigrafia, era uma relíquia em si, uma celebração da estética DIY que ecoou nas origens do punk.
A lenda, aliás, diz que o logo do é o símbolo mais tatuado em todo o mundo da década de 1980 em diante. O próprio Henry Rollins, vocalista da fase mais clássica do grupo, disse que primeiro conheceu o logo e depois a música. Seu criador é , artista plástico que contribuiu na definição de uma estética dentro do punk, e quem também sugeriu o nome Black Flag para a banda (no início eles se chamavam Panic). Irmão de Greg Ginn, Pettibon é o autor da maioria das capas de discos da banda e de seus flyers até meados dos anos 80. Ele também é o autor da icônica capa do , clássico do Sonic Youth, e trabalhou com bandas como Minutemen, Throbbing Gristle, Off! e Foo Fighters.
A influência persistente do Black Flag se manifesta também na história da SST Records. Fundada por Greg Ginn, a gravadora independente foi um marco no hardcore/punk/pós-punk e ajudou a definir o que seria o rock alternativo que explodiu nos anos 90. A SST foi criada no fim dos anos 70 como uma alternativa para lançar de forma independente os discos do próprio Black Flag. Ao longo da década de 1980, lançou os primeiros trabalhos de bandas como Minutemen, Meat Puppets e Husker Dü.
Considerada por muitos como a maior gravadora indie dos anos 80, a SST também foi responsável por lançar discos do Sonic Youth, Bad Brains, Descendents, Screaming Trees, Dinosaur Jr, Pat Smear (do Germs, e que depois passaria a tocar com o Nirvana) e Soundgarden, tudo isso antes do fim dos anos 80.
Voltando à capital mineira, numa noite em que o passado e o presente colidiram em um espetáculo tumultuado, o Black Flag e o Falsa Luz se destacaram como forças caóticas, lembrando-nos de que a música é um território onde as regras são feitas para serem destruídas ou simplesmente ignoradas.
A Autêntica, agora saturada de memórias sonoras e visuais, tornou-se um altar improvisado para os devotos da música alternativa, e o cartaz, como uma tabuleta de neon desgastada pelo tempo, permanecerá como um testemunho tangível dessa noite inesquecível para os fãs de todas as gerações.