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A imortalidade e a finitude de Milton Nascimento

A vida só é boa porque acaba. Se assim não fosse, a humanidade rapidamente sucumbiria. A certeza de que a vida um dia vai acabar obriga o ser humano a pelo menos tentar fazer valer o tempo na Terra.

Mas o artista, teimoso, não quer que a vida acabe. Pretensioso e cheio de ambição, almeja a imortalidade. Transcender a morte é um desejo comum aos grandes artistas. Ser lembrado depois de morto, deixar uma marca, cativar a reverência de milhões de pessoas.

Superar a limitação do tempo de vida é um dos maiores incentivos para a produção artística. Inúmeros já admitiram que só escreveram para serem imortais. Só produzem filmes para ultrapassar essa limitação inconveniente. Só cantam para isso.

Milton Nascimento é um deles.

Aos 80 anos, 60 de carreira, Milton Nascimento está solidificado no panteão dos raros artistas mundiais que venceram a morte.

Sem ufanismo, é importante sempre dar a noção da grandeza da música brasileira: é a melhor do mundo. A mais rica, variada e brilhante que se tem notícia. Porque emergiu do caldo cultural desse país violento, de memória falha e que tende a desprezar os seus artistas.

Milton Nascimento, portanto, está aí para ser reverenciado.

Há um tom de despedida evidente. “A Última Sessão de Música” é um olhar inevitável para o passado, um último tributo ao próprio talento, ao público e à vida.

“Obrigado por fazerem a minha vida tão alegre”, agradece Milton à plateia ainda no início do show.

Muitos artistas se negam a morrer. E se negam de um jeito feio, decadente, insistente. Se enrolam em infinitas turnês de despedida que se arrastam ao longo dos anos para colher mais um punhado de moedas, mesmo quando já não suportam o palco ou os próprios colegas de banda.

Não é o caso de Milton Nascimento.

O corpo cobra, o tempo não perdoa, a saúde vacila. E é preciso reconhecer quando a hora chega. Saber a hora de parar é para poucos.

Milton, que não está em sua melhor forma – e nem poderia – sabe.

O tempo todo sentado na frente do palco, assim como Elza Soares em seus últimos anos de turnê, Miton vem escorado por uma banda afiada e pelos vocais de apoio de Zé Ibarra, que segura bem a parte que lhe cabe.

Durante quase 30 músicas, Milton desfila um repertório obviamente brilhante, de uma carreira que já começou genial e permaneceu em altíssimo nível até o fim.

Quando sua voz começa a entoar “Ponta de Areia”, a primeira música de fato do show, após uma introdução na bateria com “Os Tambores de Minas”, a voz de Milton, cansada ou não, se sobressai como sempre se sobressaiu.

Pairando sobre o ginásio lotado, a voz de Milton ressoa em uma das grandes composições, entre tantas, que deu ao mundo.

Milton Nascimento também personifica um estado, o seu estado e terra que aprendi a amar: Minas Gerais. Milton é Minas Gerais e Minas Gerais é Milton, indissociavelmente. A música de Minas tem em Milton seu ponto máximo.

Porque existe uma música mineira que só poderia ter sido feita em Minas e só é feita em Minas.

Milton Nascimento é o grande responsável por forjar essa identidade. Ao lado dos seus principais parceiros, incluindo Fernando Brant, já falecido, a quem homenageia “esteja onde estiver” e o disco “Clube da Esquina”, escolhido esse ano “o melhor disco da música brasileira”, lembra.

Não existe “o melhor disco da música brasileira” e nunca existirá. É impossível escolher um disco como o “melhor”, brincadeira de gente viciada em rankings imaginários e competições desnecessárias.

Mas fato é que “Clube da Esquina” merece todas as loas que recebeu e recebe e que está lá no topo da música brasileira. É música de Minas no seu melhor. Com a identidade instrumental de Minas, o lirismo de Minas e a essência de Minas.

Milton, que não por acaso nomeou dois dos seus grandes álbuns “Minas” e “Geraes”. Tudo que ele podia ser e foi.

Quando Milton abandona a túnica algo circense da indumentária da turnê e coloca a boina típica que tantas vezes usou, o público vibra, como se Milton deixasse de ser Milton sentado no pedestal e se tornasse Bituca.

Quase um mortal em meio ao povo, o seu povo, o seu público.

Público esse que, no momento crucial em que vive o Brasil, prestes a definir não só o seu futuro como o futuro do próprio planeta, se mostrou ferrenho apoiador de Luís Inácio Lula da Silva, puxando inúmeros coros de “olê olê olê Lula” ao longo do show.

Milton se manteve tranquilo até perto do fim do espetáculo, quando soltou um “viva a democracia” para delírio geral. No Brasil, apoiar a democracia é manifestação política suficiente. Deixa muito claro a qual lado se alinha. Que tipo de vida se defende. Milton sabe disso.

“Vou seguindo pela vida

Me esquecendo de você

Eu não quero mais a morte

Tenho muito o que viver”

Os versos de “Travessia”, a última canção da última sessão de música, dizem muito.

A carreira de Milton Nascimento é uma afirmação da vida sobre a morte, até o fim. Da vida de um artista genial e único, um homem negro, mineiro e do mundo, como ele mesmo diz, que viveu e produziu muito mais do que o público poderia sonhar ou agradecer.

Em comunhão, público e artista se despedem.

Milton Nascimento sai dignamente dos palcos, ciente de sua finitude, para atingir a imortalidade inevitável.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Especiais