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“Arábia”: o Brasil como ele é, sem condescendência

Passados 4 anos do seu lançamento em festivais e 3 anos de quando estreou no circuito comercial, “Arábia”, premiado filme dos diretores mineiros Affonso Uchôa e João Dumans, se solidifica ainda mais como um dos grandes filmes da década passada e, cabe dizer, entre os melhores já feitos no Brasil.

O filme pode ser assistido agora gratuitamente na mostra de cinema dos anos 10 do Belas Artes À La Carte. Aproveite.

Filmado em Contagem, Ouro Preto e em outras cidades mineiras, “Arábia” impressiona primeiro pela qualidade alcançada em direção, fotografia, montagem, trilha sonora e produção em geral considerando tantas locações diferentes de um filme de estrada que bebe e distorce convenções do gênero com um orçamento tão diminuto, R$ 420 mil reais.

Temos aqui o Brasil real, cru, dos milhões de trabalhadores personificados na história de um homem, Cristiano, interpretado por Aristides de Sousa (vulgo Juninho Vende-se), ele mesmo um improvável ator, ex-detento e especialista em bicos diversos que caiu na vida de Uchôa e Dumans durante as gravações do filme anterior, “A Vizinhança do Tigre”, de 2014.

Como os dois filmes são primos, cabe falar brevemente da proposta de “A Vizinhança do Tigre”, ambientado inteiramente na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, lar de Aristides, também personagem central do filme e onde o diretor Uchôa viveu.

A premissa de “Tigre” é retratar da forma mais espontânea e realista possível o cotidiano de jovens da periferia da cidade industrial de Contagem, com suas brincadeiras, seus dilemas, o trabalho, o passatempo, as farras, as provocações.

Na linha bem tênue entre documentário e ficção, “A Vizinhança do Tigre” é expoente do que eu chamo de “neorrealismo mineiro”, safra de filmes que Minas Gerais produziu e segue produzindo nos últimos anos com uma pegada que borra os limites mal estabelecidos entre a vida cotidiana e a vida ensaiada, que pega elementos sempre do real, das cidades, vivas e cuspindo lixo, poluentes, barulho, ameaças e aconchegos, para retratar a vida dos seus personagens comuns.

São as pessoas comuns que interessam a essa leva de cineastas da qual Uchôa e Dumans fazem parte. E a lista é grande: Marília Rocha de “A Cidade Onde Envelheço” (crítica que fiz em 2016 aqui) e “Temporada” de André Novais Oliveira – os dois, junto com “Arábia”, venceram na sequência, em anos distintos, o prêmio de melhor filme do Festival de Brasília. Entram aqui também “Baronesa” de Juliana Antunes, Ricardo Alves Junior e tantos outros até “O Homem das Multidões”, de 2013, filmado por Marcelo Gomes em BH.

Esse neorrealismo mineiro, porém, em tudo difere dos seus parentes pernambucano, paulista, carioca ou brasiliense, para ficar nos principais. Minas Gerais, com seu gigantismo e sua história própria, reserva um universo em si mesmo e diferentes abordagens possíveis, do centro urbano favelizado de Belo Horizonte ao rural em toda a sua complexidade.

“Arábia”, no entanto, é sem dúvida o mais bem realizado de todos esses filmes. Juninho Vende-se é um ator extraordinário em seu deslocamento, sua simplicidade, sua capacidade de dizer o que precisa ser dito com o mínimo, sem afetação ou histeria. Uma qualidade natural do ser humano Aristides burilada com precisão pelos diretores.

Afinal, foi no caderno de memórias de Juninho e em parte da vida real do agora ator que o personagem Cristiano foi formado. “Arábia” é sobre contar histórias, essa característica tão mineira, tão íntima, tão necessária. A narração em off, comumente tão criticada, aqui funciona bem, reduzida ao essencial, longe de incomodar.

“Todo mundo tem uma história pra contar, até os mais calados”, diz o personagem de Cristiano, um homem comum, pobre, que se atira a fazer qualquer bico que lhe dê dinheiro, lhe proporcione o sustento. E com isso sofre as consequências da brutal desigualdade brasileira na colheita de mexericas, nos fretes como caminhoneiro de ocasião, no trabalho pesado da construção civil, da fábrica de tecidos e finalmente na siderurgia, na mineração.

No caminho, esbarra em histórias paralelas de gente que lutou por direitos trabalhistas, como o velho “mal falado” na região, sindicalista e “agitador” que morre subitamente, mas que “sabe tratar a terra” e a quem os trabalhadores da plantação de mexericas devem uma ligeira melhora na vida, embora isso já não se sustente mais ao passo que Cristiano precisa confrontar o não pagamento e as desculpas esfarrapadas do patrão. Ou, no fim, o colega demitido sumariamente da fábrica de aço, que pensa em “procurar o sindicato”, mas resolve “ir embora e deixar isso pra lá”.

“Arábia” é repleto desses momentos, mas nunca – embora pudesse ser – de maneira caricata. Se o filme já fazia todo sentido quando foi lançado, pós golpe de 2016 e reforma trabalhista, faz ainda mais hoje, diante da destruição completa do que restou de bem-estar social no Brasil, iniciada por Temer e em marcha avançada por Bolsonaro, Paulo Guedes e companhia. Afinal, foi para isso que o golpe  foi dado e para isso que as elites, os militares e os milicianos, o judiciário, os ruralistas e parte da imprensa elegeram Bolsonaro.

Para destruir o que restou de direitos trabalhistas e de conquistas sociais em geral – educação pública, o SUS, etc – situação que a pandemia acelerou de modo brutal e escancaradamente genocida. Hoje, o Brasil tem 61 milhões de pessoas vivendo na pobreza e 19,3 milhões de brasileiros na extrema pobreza.

“Arábia” é atualíssimo porque é atemporal, porque trata de problemas estruturais do Brasil e não problemas de ocasião. O cinema de Uchôa e Dumans guarda muito do cinema operário de Leon Hirszman, um dos gênios populares que esse país produziu.

O Hirszman de “Pedreira de São Diogo”, “Maioria Absoluta”, “ABC da Greve”, “Cantos de Trabalho”, “São Bernardo” e, claro, “Eles Não Usam Black-Tie” respira o tempo todo em “Arábia”. Assim como “A Queda” de Ruy Guerra, sobre a morte de um operário em uma obra e as violações de direitos que se seguem no Brasil urbano dos anos 70.

Mas “Arábia” é único e fala, de modo poético, cru e teatral, sobre a vida errante de quem não tem onde dormir e literalmente dorme em qualquer canto, qualquer cubículo, como ressaltado por Cristiano. Por quem literalmente carrega nas costas qualquer coisa, como mostra o ótimo diálogo de Cristiano com um motorista de caminhão.

Ao encontrar na mineração de Ouro Preto o seu destino final, Cristiano se depara com a insalubridade máxima a que esses trabalhadores são submetidos. A fábrica cuspindo fogo e enxofre 24 horas por dia, a ausência total de segurança, o risco absoluto, os turnos mudados sem explicação, o sono impossível, a alienação total, a violência permanente de um capitalismo sem regras produtivista voltado para a exportação como é o praticado em Minas Gerais.

Eu converso com muitos Cristianos no dia a dia. No Observatório da Mineração, meu projeto de jornalismo investigativo, eu converso frequentemente com trabalhadores da mineração que vivem o que o personagem de “Arábia” encara, se assusta e se revolta. Sem redenção, sem saída, tomado por um sonho de rebelião conjunta, por um delírio revolucionário que ele sabe impossível, por uma vontade de união dos trabalhadores que a alienação corta na raiz.

Todo mundo sente a mesma coisa, mas “ninguém tá nem aí pra isso”, lamenta ele. Que tudo que ele tem é a vontade de trabalhar, diz, orgulhoso e petrificado, olhando a fábrica que engole a sua própria vida e não dá qualquer opção que a mera sobrevivência. Uma sensação de fato compartilhada por muitos trabalhadores, na mineração e fora dela, incluindo aqueles de “Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar”.

Há carnaval em Ouro Preto. Há muito carnaval, mas talvez não para eles, do chão de fábrica. Não para os moradores da Vila Operária, não para Cristiano, que vai parar no hospital. Não para as pessoas que moram ao redor da siderúrgica, respirando o tempo todo o ar poluente que destrói a sua saúde.

Há, sim, momentos de prazer e lazer, sobretudo pela música, pelo violão que Cristiano toca e divide com os amigos, do sertanejo a Racionais MC’s e a não escolhida por acaso “Homem Na Estrada”. Do “Cowboy Fora da Lei” de Raul Seixas, em outra grande cena do filme.

Há amor na figura de Ana, a única mulher a quem Cristiano conseguiu amar, uma história interrompida por um fato grave que os dois não souberam como se reinventar a partir dali, mas continuaram se amando, à distância, pelo celular, enquanto o barulho das máquinas não dá sossego para a mente.

“Arábia” costura tudo com realidade, com lirismo e com drama, sem condescendência. A narração de Cristiano é a narração de um homem comum, que aceita os fatos da vida com resignação, que desencadeia acontecimentos extraordinários com a naturalidade de quem não vê nada de extraordinário com o que acontece com ele.

É curioso que “Arábia” tenha suscitado uma crítica tão ressentida de Eduardo Escorel na Piauí, revista cujo dono é de uma família dona de mineradora em Minas. Eduardo Escorel é indiscutivelmente um dos grandes montadores da história do cinema brasileiro, trabalhando inclusive com Leon Hirszman, com Glauber Rocha, Eduardo Coutinho e Joaquim Pedro de Andrade.

Em sua “crítica” sobre “Arábia”, no entanto, Escorel, que não nasceu ontem e conhece muitíssimo bem as dificuldades comerciais do cinema brasileiro, escolhe atacar o filme de Uchôa e Dumans pelos “elogios excessivos” que recebeu da crítica e usa o fracasso comercial do filme como indicativo, ao que parece, do fato de ser uma obra ruim que não se comunica com o público.

É preciso ser muito canalha para escolher esse tom, especialmente vindo de alguém como Escorel, que colecionou fracassos de público a vida inteira e sabe perfeitamente que o cinema brasileiro independente, feito em um país colonizado culturalmente até o tutano e refém de uma lógica de distribuição predatória e brutal que privilegia blockbusters americanos em detrimento de filmes nacionais – algo ainda mais forte que nos anos 60, 70 e 80, diga-se – é a última prioridade na fila dos comerciantes de arte.

“Essa dicotomia, que é frequente, indica uma inadequação dos filmes ao mercado. Responsabilizar o público por esse desajuste, como se faz com frequência, não passa de uma forma de negar evidências que põem em questão a própria subsistência de grande parte do cinema produzido no Brasil. Arábia é um caso extremo dessa crise profunda e persistente. Os encômios que o filme recebeu, sem terem repercutido junto aos frequentadores de cinema e beneficiado o resultado comercial, caíram no vazio”, escreve Escorel.

Difícil ser mais mesquinho do que isso.

Provocar essas reações, no entanto, engradecem ainda mais “Arábia”. Trata-se de um grandíssimo filme, não por acaso premiado, reconhecido e elogiado no Brasil e fora do Brasil, vindo de diretores ainda iniciantes e de um estado que, embora historicamente importante – inclusive no cinema, de Humberto Mauro a dezenas de outros – passa por um renascimento artístico no audiovisual.

No final de “Arábia”, ficamos como Cristiano, bestificado diante da máquina que devora tudo ao seu redor, apagando lentamente diante de uma fogueira improvisada, vagando pela mente e pela estrada, matutando como foi que diabos aceitamos tudo isso e o que vamos fazer a partir dali.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

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