O diretor Marcelo Gomes parte da nostalgia para desvendar a escravidão contemporânea imposta pelo ultraliberalismo que sequestra o tempo, os sonhos, o sono, a saúde e a dignidade do trabalhador.
Somos todos um pouco filhos de Toritama, essa cidade esquecida do agreste pernambucano que, de base agrária, se transformou em um polo industrial que produz 20% do jeans brasileiro em centenas de fábricas de fundo de quintal, “o ouro azul” cortado, costurado, tingido e rasgado 24 horas por dia por seus 40 mil habitantes.
É bem possível que você tenha um jeans produzido em Toritama no guarda roupa. A paisagem desoladora e a vida frenética da população consumida pela produção do jeans – desde a primeira infância até a velhice – revelam de maneira brutal a farsa do capitalismo.
Marcelo Gomes, responsável por “Cinema, Aspirinas e Urubus”, seguramente um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, estreia em documentários com o olhar atento, irônico e ácido para uma das cidades da sua infância.
Permeado pelo recurso comum da narrativa em off, Gomes vai até Toritama para mostrar como a cidade que visitava na infância com o seu pai, fiscal de impostos, abandonou o caráter rural para abraçar a produção incessante que é o símbolo histórico do excedente do capitalismo, das relações sociais destroçadas, das vidas possíveis usurpadas por uma promessa vazia de dinheiro que se autodevora em ciclos de 365 dias até o escapismo do carnaval.
É no carnaval – e somente no carnaval – que os habitantes de Toritama se permitem viver. Tomados pelo frenesi da possibilidade da diversão, do prazer, do lúdico, do tempo gasto como bem entenderem, do banho de mar e do descanso na rede, vendem o que tem e o que não tem para alcançar essa curta ruptura com a escravidão industrial.
Vidrados pela promessa de experimentar um sopro de 1 semana de vida, Toritama fica esvaziada. Na volta a gente vê o que faz. Vende-se a única geladeira da casa, a TV, o que estiver à mão. Vale a pena? Vale, e muito, diz uma entrevistada. O que eu sei da minha vida é só o agora, diz ela. Meu mundo é hoje. No retorno pra casa e para os grilhões do ouro azul a gente trabalha de novo e compra de novo para esperar até o próximo carnaval.
Nada mudou
É impossível assistir “Estou me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar” sem a sensação permanente e incômoda de que nada mudou. Por mais que se alardeie todas as transformações tecnológicas, práticas e sociais do capitalismo nos últimos dois séculos, a base é a mesma. A essência do capitalismo e das relações que são ditadas pelo capital são rigorosamente as mesmas.
“Uma vez que o trabalho vivo – com a troca entre capital e trabalhador – se incorpora ao capital e aparece como atividade a este pertencente desde o início do processo de trabalho, todas as forças produtivas do trabalho social passam a desempenhar o papel de forças produtivas do capital, do mesmo modo que a forma social geral do trabalho aparece no dinheiro como propriedade de uma coisa. Assim, a força produtiva do trabalho social e suas formas particulares se apresentam então na qualidade de forças produtivas e formas do capital, do trabalho materializado, das condições materiais (objetivas) do trabalho – as quais, nessa forma independente, em face do trabalho vivo, se personificam no capitalista. Eis aí, mais uma vez, a relação pervertida, que, ao tratar do dinheiro, chamamos de fetichismo”.
Marx, 1863. Esse único trecho dos “Manuscritos econômico-filosóficos” – e são inúmeros os trechos do pensamento de Marx que caberiam aqui – retrata perfeitamente a dinâmica capitalista de Toritama e, também, a mentalidade da imensa maioria dos seus moradores.
O fetichismo absoluto em relação ao dinheiro. A aceitação da realidade brutal em que vivem não apenas com complacência, mas com júbilo, com gratidão. Pois, mais do que a ditadura econômica que representa, o capitalismo é especialmente eficiente em dominar a mente humana. Em nos fazer amar o Grande Irmão. Diz uma moradora enquanto costura um jeans:
“A vida da gente não é ruim, não. Quem pensar que a vida da gente é ruim tá enganado, por que não é todo mundo que tem o privilégio de ter trabalho, ganhar o seu dinheiro […] Gente que eu vejo passando aí, na televisão, na África, morrendo de fome, os países aí fora em guerra e, graças a Deus, aqui onde a gente mora não tem isso. Aí, isso é uma vida ruim? É nada. Ruim é para quem morre”.
Ruim é pra quem morre. Quando não se tem expectativa alguma de um mundo melhor, de uma vida digna, a sua única exigência é não morrer de fome. Isso lá é ruim? É não. Tem sempre alguém pior por aí, e isso é um consolo mais do que suficiente. Devemos dar graças ao capital.
Toritama é “uma mãe”. Os moradores agradecem pela benção de trabalhar de 7 às 22h e engolir o almoço quando conseguirem. Em “serem donos do próprio tempo” e por “receberem por produção”. A mesma lógica que rege centenas de milhares de trabalhadores do Uber, do Ifood e dessa tal “economia compartilhada”. Um discurso ensaiado à exaustão – uma mentira – que, repetida, vira “verdade”.
É só querer trabalhar que qualquer um se dá bem. Uma funcionária explica: ganha R$ 0,10 por cada parte da calça costurada. Se fizer 1.000 peças por dia – uma meta que ela aparentemente julga razoável – terá um bom dinheiro no fim da jornada. Tá tudo certo. Tem gente pior. “Meu sonho é ficar rico”.
Previdência é um luxo
O ultraliberalismo genocida de Pinochet e Paulo Guedes – por ter sido funcionário de Pinochet, lecionado no Chile da ditadura e estudado na mesma Universidade de Chicago que ditava todos os movimentos dos militares chilenos – tem na previdência um inimigo mortal.
É preciso privatizar a vida das pessoas. É preciso dominar completamente um trabalhador envelhecido, adoecido e empobrecido e fazê-lo pagar pelos últimos dias de vida, caso chegue até lá. Dito assim parece absurdo. Porque é.
A “reforma da Previdência” implantada no Chile de Pinochet, a mesma que levou os idosos do país à miséria e que motiva os protestos que ocorrem neste momento em Santiago é a mesma que Temer começou e Bolsonaro e Paulo Guedes estão implantando no Brasil. A privatização ampla, geral e irrestrita acompanha.
Em Toritama, apenas os trabalhadores mais velhos se lembram sobre como é ter direitos. Um deles dá o depoimento: “É uma escolha difícil. Os mais novos preferem ganhar por produção. É verdade que você ganha um pouco mais, mas não tem nenhum direito. Eu preferia a carteira assinada. Me preocupo sobre como vou estar amanhã. Sobre como vou me aposentar. Que suporte eu vou ter. Mas os mais novos não pensam nisso”.
A Previdência é um luxo. O que resta de bem-estar social no Brasil precisa ser completamente destruído. O que sobrou de direitos trabalhistas e de organização sindical precisa ser integralmente destruída. É com essa retórica e prática fascistas que Temer começou o projeto e que Bolsonaro, Guedes, Moro, Rogério Marinho e cia ltda tem continuado. Foram eleitos pela elite mais sádica, mais cretina, mais assassina, rentista, escravocrata e perversa do mundo para isso. E estão trabalhando bem para manter o país mais desigual do mundo soberano no posto.
“O filme ganhou uma pauta urgente. Vejo o Brasil com várias ‘Toritamas’ em um futuro bem próximo. A nova previdência vai trazer o falso estímulo ao trabalho autônomo, sem carteira assinada e sem direitos. Estão tentando fazer a economia girar massacrando o trabalhador. Eles querem que a gente pare, que fiquemos inertes. O povo deveria estar nas ruas lutando contra essa nova previdência, mas não está…”, diz o diretor.
O “pecado” da “preguiça” e o evangelho do trabalho
Entre tantos habitantes entrevistados e tantas cenas memoráveis, Marcelo Gomes escolhe Léo como o personagem principal. A primeira vez que vimos Léo ele está dormindo entre centenas de calças jeans. Está cometendo o pecado da preguiça, “dormindo no trabalho”, está subvertendo a ordem das coisas.
O cineasta brinca com a situação, de propósito e Léo, pego “de surpresa” responde também com gozação. Perguntando ao companheiro ao lado se Léo é trabalhador, o colega confirma que sim, e muito.
Aos poucos, vamos conhecendo Léo, 32 anos, que começou a cortar cana aos 13. Léo vai desvendando a sua história de vida, enumera os piores trabalhos pelos os quais passou. “Cortar toco” é o pior deles, diz.
Ajudando na construção de uma casa de um amigo, Léo filosofa. É um personagem popular com uma vivência absurda, uma sabedoria de vida profunda e difusa, complexa, paradoxal e até contraditória.
Dividido entre as promessas de redenção da igreja e os prazeres do álcool, Léo sentencia, em um momento de lucidez: “mas o meu problema não é a cachaça, é o trabalho”.
O ócio sempre foi o pecado capital inaceitável. O ócio sempre foi negado ao trabalhador porque é subversivo, contracorrente, desafiador, criativo, reflexivo. Perseguir, limar e maldizer o ócio – a “vagabundagem”, inclusive criminalizada no Brasil e em muitos países até outro dia – é uma estratégia histórica e eficaz.
O evangelho do trabalho foi muitíssimo bem construído por uma elite que passou 400 anos escravizando negros e indígenas para fazer o trabalho pesado que ela nunca, nunquinha, se prestou a fazer. Por uma elite canalha que, após a “abolição” da escravidão – o último país do mundo a chegar lá – o fez não só para evitar a reforma agrária mas se valeu de salários de fome e pessoas em subempregos que aceitam tudo para ter o que comer.
Essa sempre foi a ordem vigente no Brasil. Até hoje. Não satisfeitos, transformaram o país em um paraíso fiscal para a elite, vivendo do rentismo mais criminoso e devastador. Uma ilha da fantasia da desigualdade mais brutal do mundo e com tudo que ela traz.
Toda a história contada pela elite brasileira, portanto, é uma tentativa continuada de nunca trabalhar, não importa quantas milhões de pessoas precisam escravizar, subjugar, humilhar. Não importa quantas leis precisam aprovar e de que maneira podem manipular a “democracia” para manter todos os seus privilégios e ir além. Eles querem sempre mais.
Todo o evangelho do trabalho e, hoje, do “empreendedorismo”, do “coach motivacional”, do empresário abnegado que quer “produzir no Brasil contra tudo e contra todos”, é, portanto, uma maneira bastante canalha de gozar dos privilégios que sempre tiveram. E que não resiste a 1 minuto de escrutínio histórico.
É esse evangelho que elege João Dória, Jair Bolsonaro, Romeu Zema, Ibaneis Rocha, que coloca Luciano Huck como favorito para as próximas eleições presidenciais, que move os holofotes de gente como o de Flávio “Geração de Valor” Augusto da Silvia, Luciano “Véio Sonegador da Havan” Hang e tantos e tantos outros. Todos eles fascistas, sem tirar nem por. Todos eles fascistas de carteirinha que não merecem o mínimo respeito. Merecem, sim, a atenção máxima para que não frutifiquem mais do que já tomaram conta.
Diz Bertand Russell, ainda nos anos 30:
Há homens que, pela propriedade da terra, podem fazer outros pagarem pelo privilégio de poderem existir e trabalhar. Estes proprietários de terras são ociosos, e, portanto, se esperaria que eu os elogiasse. Infelizmente, a sua ociosidade se torna possível pelo trabalho de outros; de fato, seu desejo pelo ócio confortável é historicamente a fonte de todo evangelho do trabalho. A última coisa que eles desejariam é que outros seguissem o seu exemplo.
A técnica moderna tornou possível que o lazer, dentro de certos limites, não seja uma prerrogativa de uma pequena classe privilegiada, mas um direito distribuído equanimemente pela comunidade. A moral do trabalho é a moral de escravos, e o mundo moderno não precisa da escravidão.
O ultraliberalismo fascista brasileiro contemporâneo do qual Toritama é apenas um exemplo mostra que estamos muitíssimos longe de superar isso.
O som torturante das máquinas
Marcelo Gomes não precisa pesar a mão em retratar a rotina de repetição infindável dos trabalhadores do “ouro azul” do agreste. As imagens falam sozinhas. E são cruéis. E insuportáveis. Angustiantes. Como o próprio diretor diz, em um recurso válido.
O som incessante equivale a uma tortura. Por isso, Gomes entra na narração e diz que vai suprimir o som, substituir por uma música. Entra o segundo movimento, Largo, do concerto para piano e orquestra nº 5 em Fá menor, de Bach.
Mas a repetição da imagem segue incomodando. Todos os dias, das 7 às 22h. Da primeira infância até a velhice. Mais de 1.000 peças por dia. Toda a população trabalhando incessantemente para produzir 20% do jeans brasileiro. Cada fase da produção fracionada e delegada a uma massa de trabalhadores diferente. Tudo muda para permanecer exatamente igual.
O capitalismo se repete mesmo como tragédia e como farsa. Você já viu esse filme antes. Essa realidade documentada. É familiar. O balé de mãos incessante que não para nunca. A absoluta falta de qualquer suporte, de qualquer segurança, o risco da mutilação a qualquer momento. Sem qualquer direito trabalhista a recorrer.
“Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, vem à mente. Nada mudou. Ganha talvez outras caras, outros contornos, outras cores. Mas a essência é a mesma. O privilégio de poder trabalhar, dizem. Ser dono do próprio tempo.
Das 7 às 22h, de segunda a sábado. E domingo é dia de vender a produção na feira, até o movimento cair e os trabalhadores cometerem o pecado de um breve cochilo – outro golaço do diretor.
“Fiquei com um nó na cabeça para desvendar, e estou passando esse nó para o público — conta Gomes. Filmes sobre sweatshops, mostrando como os trabalhadores braçais são vítimas do capitalismo, já há vários por aí. O que temos em Toritama é uma situação complexa, não queria vitimizar ninguém. O que me interessava era ouvir os desejos e os sonhos dessas pessoas que se apegam à ideia da autonomia, de ser o próprio patrão, sem perceber que estão sendo escravizadas por elas mesmas. É um filme que expõe a farsa do neoliberalismo. Fala de um Brasil que ninguém conhece. Toritama é uma China com um Carnaval no meio.”
Enfim, o carnaval
Marcelo Gomes faz um trato com Léo: a produção ajuda financeiramente o carnaval dele e da família em troca das imagens captadas na praia. A equipe fica para registrar a Toritama vazia das memórias de Gomes. O momento em que ela se assemelha ao paraíso idílico e silencioso que não volta mais.
São raros aqueles que fogem ao esperado. O pastor de cabras que não se conforma em produzir febrilmente para levar uma vida sem sentido. Seu João, “a única pessoa em Toritama que ainda tem tempo para olhar o céu e esperar a chegada da chuva”.
A senhora que, sentada na entrada de casa, assiste ao frenesi da produção acéfala sem se juntar ao rito. Ela se nega. Quem ela pensa que é para se negar? Mas ela se nega. Sabe, por experiência e por intuição, que não quer participar daquilo. Que não faz sentido participar.
No carnaval, Léo, sua família e amigos encontram o tão esperado desbunde. A cerveja, o banho de mar, a fantasia, a brincadeira, o descanso do velho na rede, que ele filma com prazer infantil, ciente talvez da raridade da cena, invejando aquela serenidade. O ócio é um pecado, mas ali é permitido.
Léo está finalmente em transe. Livre, leve, ébrio e solto. Ainda que por apenas alguns dias. “E quem me ofende, humilhando, pisando/ pensando que eu vou aturar/ tô me guardando pra quando o Carnaval chegar…”
Subitamente, Léo e toda Toritama está de volta ao trabalho. Corta a câmera. Com a máscara que usa para não morrer de contaminação das tintas tóxicas que tingem as calças jeans que produz, Léo tem o olhar perdido, extenuado, morto, vazio e infeliz.
Começou tudo de novo. Mais 365 dias de horror e de tortura para gozar uma ralé de glória.
É tudo o que o ultraliberalismo fascista tem a oferecer.