Skip to content →

Andy Gill, Gang of Four e o mal-estar permanente de gerações

Eu não estava muito bem preparado para aquela noite de 09 de setembro de 2006 em Belo Horizonte. Conhecia o Gang of Four superficialmente, de uma ou duas músicas. Na época, me ligava muito mais em metal, rock, progressivo e música brasileira do que no post-punk, esse rótulo ao qual eles foram confinados.

Às vezes a ignorância é mesmo uma benção e a sorte te enfia um soco na cara.

Quando Andy Gill, Jon King, Dave Allen e Hugo Burnham subiram ao palco, eu não sabia bem o que esperar. Sabia que uma banda icônica havia retornado há pouco após um enorme tempo de separação. Não mais que isso.

E foi aí que a minha mente foi explodida pela camarilha dos 4.

Poucas testemunhas presenciaram aquele show. O suficiente para que ele seja comentado até hoje por quem teve o privilégio de estar ali. Da minha parte, após centenas e centenas de bandas vistas ao vivo, aquele 09 de setembro de 2006 permanece como um dos melhores shows da minha vida.

O retorno da formação original não durou muito. O Gang of Four ainda voltou ao Brasil com outras formações, restando somente e sempre Andy Gill a segurar o bastão. Evitei essas oportunidades talvez pela preservação da memória original. Há shows e bandas em que é bom guardar com carinho aquela primeira transa.

Andy Gill, um dos mais originais e um dos mais imitados guitarristas que se tem notícia, acaba de morrer aos 64 anos.

Em 2016, 10 anos depois daquela noite, mandei uma mensagem para Gill pedindo uma entrevista. Ele respondeu alguns dias depois meio que “se desculpando” (!):

Hi there

Just remembered I’m sposed to be contacting you, sorry, its been real busy lately.

Very best.

Acabou que a entrevista nunca aconteceu. E nunca acontecerá.

“Damaged Goods”, o primeiro single lançado pela banda em 1978, se tornou uma espécie de hino intransponível de várias gerações. É provável que você tenha escapado de poucas festas “indie” sem que ela fosse tocada.

Ali, o mal-estar do capitalismo, do consumismo irresponsável e do neoliberalismo predatório se faz onipresente. Mas é “To Hell With Poverty!” do EP “Another Day/Another Dollar”, de 82, outra das minhas preferidas: “In this land right now, some are insane, and they’re in charge / To hell with poverty / We’ll get drunk on cheap wine” canta Jon King.

Os canalhas estão no poder. Foda-se a pobreza, vamos ficar bêbados de vinho barato.

Margaret Thatcher mal completava 3 anos no cargo máximo do Reino Unido naquela época. E já estava muitíssimo claro para onde as coisas iriam caminhar.

“Entertainment!”, de 1979, o disco de estreia, permanece como um dos melhores de todos os tempos e por lá ficará. Como admitiu Michael Stipe, do REM, “Entertainment! definiu tudo que veio antes. Eu roubei muito dele”.

Do discurso para a prática. Da teoria para os palcos e o estúdio. Uma banda de esquerda, marxista, antifascista. Mas também provocativa, sexy e cabeçuda.

Das marchas anti-nazistas das ruas de Leeds para o panteão da música pop, ninguém escreveu tão bem sobre o Gang of Four quanto Greil Marcus.

What was on their mind was the notion that everyday life—wage labor, official propaganda, the commodity system, but also the way you bought a shirt, how you made love, the feeling you had as you watched the nightly news or turned away from it—was not “natural,” but the product of an invisible hand. It was an interested construction, someone else’s project, a rulers’ project.

The Gang of Four acted out, and put into records, a picture of an individual who had discovered that ordinary life—the gestures of affection and resentment one made every day, the catchphrases one spoke every day as if one had invented them—is in fact sold and bought as grease for shopping and silence for the accumulation of capital and passivity.

É esse mal-estar permanente, de crises cíclicas e depressões coletivas, econômicas e mentais, que pautou toda a geração dos anos 80 até hoje. Os fascistas estão no poder, hoje, no Brasil, nos Estados Unidos, na Itália, na Hungria, na Turquia (…) na Inglaterra. Tragédia, farsa, dominação e choque.

Uma estrutura muito bem montada para que a história se repita sempre como uma bigorna a esmagar o trabalhador médio. Uma bota pisando o rosto humano. Todo o tempo.

As condições políticas, econômicas e sociais em que o Gang of Four surgiu são, no duro, engolidas, regurgitadas e reembaladas, bem parecidas com aquelas do mundo que Andy Gill deixa.

Décadas, contextos e países que se entrelaçam e se devoram, deixando na boca o mesmo gosto amargo da angústia em existir em condições tão precárias – seja para qual lado você olhe e qual sentido você dê.

É Marcus, novamente, que oferece o melhor resumo:

The Gang of Four’s music was always about resistance, but it was not the resistance of the rebel against the ruler. It was about the resistance of the rebel against him or herself. Most of the time, most intensely, most dramatically, the struggle ends with a raging acceptance, a rage that can’t find its target (…) Occasionally, as with the quiet mumbled “Paralysed,” a person faces oblivion, in this case what unemployment is so chillingly called in the U.K. “redundancy.” Rage becomes meaningless, and the acceptance you hear takes on a new form: self-hate.

The Gang of Four offered no anthems, no tunes of right and wrong. They were interested in constructing a drama in which each listener found his or her place as a new historical subject, set free from all certainties, all forms of common sense and obvious conclusions, set free in a convulsion you can hear in so many of the numbers on this disc, perhaps most fiercely in “Return the Gift.”

A influência da banda, e sobretudo da guitarra de Andy Gill e do baixo de Dave Allen, é monstruosa. No Brasil, os Titãs, que não copiaram pouco do Gang Of Four e do post-punk em geral, transformaram “Damaged Goods” em “Corações e Mentes” já no disco “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, de 87.

Boa parte dos grupos com algum hype nos últimos 15 anos beberam – plagiaram? – muito do que o Gang of Four fez: Franz Ferdinand, LCD Soundsystem, Bloc Party, Futureheads, The Rapture, Liars, TV On The Radio, Arctic Monkeys, Interpol…pense em um nome e haverá algo deles lá.

Mas isso pouco importa. Em 30 anos, quase nenhuma dessas bandas será lembrada.

Andy Gill foi um dos responsáveis por moldar a música “alternativa” do século XX. E, junto com os seus amigos, por oferecer bem mais do que 99% das bandas é capaz de oferecer. Fez mais que o bastante. Foi além do que boa parte do público merece.

Ontem, a Inglaterra saiu oficialmente da União Europeia depois de um longo processo que literalmente derreteu o país e colocou um bufão fascista e perigoso no poder, Boris Johnson. Em Londres, milhares celebraram nas ruas sem saber bem o quê. Nas últimas eleições, o Partido Trabalhista encarou algumas das suas piores derrotas em décadas, incluindo redutos históricos da esquerda.

No mesmo dia, Andy Gill morre subitamente por problemas respiratórios.

Talvez seja mesmo o momento apropriado para sair de cena.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Especiais