Filmado em 2014, apresentado em festivais em 2017 e só agora lançado oficialmente no circuito comercial brasileiro, “Açúcar”, dos diretores e roteiristas pernambucanos Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, mira no Brasil em ruínas, no conflito de classes e no apagamento – ou negação – da história a partir da cana de açúcar na Zona da Mata de Pernambuco.
A seu favor está o caráter poético e de suspense, de um filme de poucos diálogos, de silêncios e olhares, de luz e sombra, colocando o primor técnico e um bom roteiro nas mãos de atrizes e atores talentosos.
O tema se apresenta menos comum do que possa parecer, considerando o histórico brasileiro. Todas as tentativas de abordar essa questão serão insuficientes e o nosso cinema ainda nem passou perto de arranhar a superfície de possibilidades que a brutalidade colonialista da escravidão por quase 400 anos nos deixou.
“Açúcar” cresce ao tratar isso de maneira que poucos filmes se arriscam: não pelo excesso, mas pelo minimalismo, pelo absurdo e, em parte, pelo horror.
Mas o filme também peca em maneirismos excessivos, no desenvolvimento falho de personagens, na repetição de clichês e alguns diálogos não muito inspirados.
Ainda assim, é bem melhor que a média em função das atuações exuberantes de Maeve Jinkings como Bethânia, Dandara de Morais/Alessandra, José Maria Alvez/Zé e Magali Biff/Branca.
Da onírica e fantasmagórica cena do barco que corta os canaviais da abertura até a decomposição do relacionamento entre os 4, o arco narrativo privilegia a tensão permanente entre os remanescentes dos descendentes de escravos que ali fincaram o seu instituto cultural e o resgate das suas tradições – negadas, apagadas e temidas pela classe dominante – e a tentativa de manter o poder do decadente e em ruínas Engenho Wanderley.
Aqui, a “cordialidade” é sempre pautada pela lembrança constante sobre quem acha que ainda pode mandar e tem dinheiro – embora vivam na prática em estado de falência – e as pessoas que prestam serviço para a Casa Grande, os vizinhos incômodos ao lado que, com o apoio de dinheiro estrangeiro, querem comprar o que restou do Engenho.
A tensão – social, física, sexual, política, racial e de classe – é permanente. A aparente “conciliação” não tarda em se degradar. Os crimes do passado rondam as pretensões de Bethânia, os tempos de glória da sua família viraram o mesmo pó que ela teima em não aceitar como parte da decadência.
A obsessão com a limpeza, sempre colocada sobre os ombros de uma empregada negra, é também a obsessão da protagonista em ela própria se embranquecer. Do cabelo alisado até o caos total e a assumir o seu cabelo natural no fim, Bethânia será lembrada o tempo inteiro que aquela terra não é ela, nunca foi ela e nunca será ela. Ao contrário do que ela teima em acreditar.
“Açúcar” é um conto sobre o apagamento e a negação da história de um país que tem na escravidão, no racismo, na perseguição, no preconceito e na desigualdade toda a sua base de formação.
Uma herança onipresente que sempre retorna para apavorar as convenções sociais frágeis de uma elite estúpida, hipócrita, decadente e em frangalhos. Que teme e criminaliza tudo que se relaciona com a nossa formação africana. Que é incapaz de reconhecer o chão sob os seus pés.
Os anos que o filme levou para ser oficialmente lançado acabam por favorecê-lo. “Açúcar” é ainda mais forte em tempos de um presidente racista, fascista e que serve de boneco de ventríloquo da elite mais sádica, atrasada e cretina que se tem notícia no mundo.
Paradoxos da culpa burguesa
“Açúcar” também ganha tons autobiográficos quando descobrimos que o engenho onde foi filmado o filme é da família da diretora Renata Pinheiro.
Assim, temos novamente o cinema, uma arte capitalista por excelência, com custos altíssimos de produção e que depende largamente de financiamentos milionários e bons contatos na indústria, por si só uma barreira de classe significativa, funcionando como expiação da culpa burguesa que a elite “progressista” brasileira sente.
É o suficiente? Tenho minhas dúvidas.
É comum que diretores com passado (e presente) abastado mirem “questões de classe”, raciais e de desigualdade em seus filmes. Seria uma forma de expiar os seus pecados através da arte. O que quase sempre resvala em complexidades mal resolvidas, para ser generoso.
Nessa entrevista de 2017, Dandara de Morais, a atriz que interpreta a empregada Alessandra e também o corpo negro feminino incorporado pelas entidades no culto africano que Bethânia observa com medo, mostra parte do seu desconforto com a personagem e como o filme evoluiu na sua cabeça com o passar do tempo:
“Assim que li o roteiro, achei o máximo a minha personagem. Ela entrava no filme como um contraponto à personagem de Maeve, para bagunçar as coisas e deixar tudo de pernas para o ar. Gostei muito disso tudo quando recebi o roteiro. Mas há uns dois anos atrás [o filme foi rodado em 2014], comecei a pensar melhor sobre isso porque fui me tornando mais militante. Comecei a ler mais, escrever, me informar. E aí comecei a ver a minha personagem de outra forma. Que pode agradar, pode não agradar, mas que eu sei que vai gerar um debate. E quero estar nesse debate! O que mexeu com a minha alma é o que aconteceu depois que filmamos. É tudo que tenho descoberto como mulher negra, é tudo que eu tenho conversado com as pessoas e vendo que a personagem ficou muito legal, gostei muito do que aconteceu com ela. Defendo a minha personagem completamente. E defendo o filme também, apesar de fazer críticas”.
É absolutamente compreensível o desconforto de Morais.
No fim, “Açúcar”, com seus erros e acertos, acaba por retomar os conflitos, contradições, paradoxos, ressentimentos e críticas, todas necessárias, dos temas que aborda. E só por isso já merece ser visto.