Às vezes a história nos dá um presente e ninguém percebe de imediato. O tempo em que se vive tem a desvantagem de não poder gozar o distanciamento.
É como se precisássemos de um retrato mais pálido e distante para dar o devido valor que uma obra merece. A música – e a arte em geral – vive com frequência entre a histeria injustificada e a apatia estúpida.
Paciência. Mateus Aleluia sabe bem disso. O seu Tincoãs levou décadas para ser de fato ouvido, respeitado, cultuado.
Seu primeiro disco depois que retornou de Angola, o espetacular “Cinco Sentidos” de 2010, ainda não se aproveitou desse interesse tardio.
Precisou que “Deixa a Gira Girar” crescesse de play em play a ponto de virar “hit” – ouvida, remixada, regurgitada – para que a obra de Aleluia e dos Tincoãs fosse ouvida com o mínimo de atenção.
“Fogueira Doce”, de 2017, foi outro colosso. E “Olorum” é mais um desses discos que transpiram um acontecimento importante, uma oferenda bem preparada e enfeitada para ser entregue em dia de festa.
Mesmo reconhecendo que “o seu povo está cansado” – muito, muitíssimo – “Olorum” é um disco mais festivo, mais “agitado”, mais “moderno” que seus antecessores, com arranjos mais solares. Menos lúgubre, menos pesado e melancólico. Isso no mais lúgubre dos anos. No meio da pior pandemia em 100 anos.
Difícil pensar que não seja proposital. Mateus Aleluia conserva, em seu discurso e sua música, um otimismo imprudente, uma sabedoria comovente, uma profundidade que não é acessível aos mortais imediatistas e angustiados nos quais me incluo.
Vai passar, ele diz. Somos maiores e melhores que eles, diz. O Brasil não é isso, o Brasil é outra coisa. E ele tem razão. Como Gil, Aleluia tem fé na festa.
Somos um povo que dança. Nossos deuses dançam. Nossa comida é picante. Quando chega a hora, não podemos amarelar. “Olorum” é um disco dançante até. “Pimenta Mumuíla” comprova.
Aleluia é África. Como o Brasil é. E esta é uma redundância que sempre precisa ser reforçada.
“Olorum” também é sagrado e silencioso. A faixa-título, “Samba-Oração”, “Bem-Te-Vi” e “Talismã” mostram isso. Silêncio é algo caro a Aleluia. Em ano de Obaluiaê como foi 2020 (a peste, a morte, a introversão, o recomeço), mais ainda.
Ano passado, fui assistir a um show de Aleluia no Círculo Operário do Cruzeiro em Brasília. Tudo errado. No formato samba, em um lugar acostumado a rodas animadas regadas a muita cerveja e cachaça, com a turma já alta e mais preocupada em flertar, conversar e dançar do que qualquer outra coisa, não era exatamente palco para o show silencioso de Aleluia.
Afinal, estamos diante de um operário da sensibilidade, como ele mesmo se define.
O documentário “Aleluia – O canto infinito do Tincoã”, de Tenille Bezerra, melhor do ano e um dos melhores que se destaca fácil entre a infinita safra de documentários sobre artistas que não vão além do óbvio, mostra com precisão, amplitude e silêncio isso.
Mateus Aleluia é uma entidade. Que fique ainda por muito tempo conosco.