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O Brasil que importa na voz ancestral de Sapopemba

Tenho insistido na tese do “Brasil que importa”. Longe do ufanismo rasteiro e de delírios patrióticos de um Policarpo Quaresma, é importante traçar essa noção – essa vontade, essa afirmação – sobre o que constitui esse país no que ele tem de essencial e que vale a pena.

Não existe “o Brasil que dá certo”. A ideia do “Brasil que dá certo” é o empreendimento colonialista, assassino, racista, vil e fascista que vimos todos os dias dentro e fora das casas, nas praças, no Congresso, nas ruas, na TV. Você escolhe. É só manter os olhos abertos com a vista em dia.

E recorrer sempre à história, essa danada, palco de batalha permanente. No Brasil e no mundo, o passado nunca está à salvo. Ele é sempre alvo de disputa, de significado. É manipulado, torcido e retorcido ao prazer de quem detém o poder em certo espaço de tempo.

Por isso a nossa historiografia é normalmente apagada quando se trata de quem realmente constitui o Brasil: os povos indígenas e o povo preto. Porque há sempre os fãs ferrenhos de estátuas de assassinos cretinos que tentam fazer valer à força o peso da sua bota suja de sangue.

E a arte tem o poder de tentar colocar as coisas no lugar, mesmo que não queira ou não seja pensada para isso. Mas tem. Sendo a música brasileira a melhor do mundo e totalmente impregnada da herança africana, seu papel como parte da história é significativo.

E José Silva dos Santos, o Sapopemba, nascido em Alagoas às margens do Rio São Francisco e criado em São Paulo, é Brasil pra caralho.

Motorista e faz tudo, Sapopemba se formou no candomblé e assumiu a carreira artística já relativamente tarde na vida.

Aos 73 anos, Sapopemba lança o disco “Gbọ́” – ‘ouça’ em iorubá – sua segunda obra de direito e de fato. E basta ouvir a primeira faixa do álbum, com “Exu” literalmente abrindo os caminhos, para perceber que não estamos diante de um artista qualquer.

Ogã – responsável pelos atabaques e um pouco mais – com décadas de terreiro, Sapopemba canta em iorubá louvores aos orixás, músicas próprias e tradicionais mescladas, o sacro e o popular, “cocos beradeiros de Alagoas, sambas de roda e chulas da Bahia, cantos de Orixás de Nação Angola, cantigas de caboclo e cantigas de roda”.

A voz ancestral de Sapopemba encarna Xangô, seu pai de cabeça, o rei de Oyó, orixá da justiça, dono das montanhas, das pedreiras, do fogo, dos raios e do trovão. Seus dois machados empunhados para fazer valer o seu poder em seu próprio tempo. Embaixo da gameleira a vida de Sapopemba fala por si – e sua música transpira isso.

Não há espaço para adereços desnecessários no que Sapopemba produz. Não há brecha para o estilismo vazio, a cultura africana como acessório, o uso indiscriminado de símbolos, itãs, instrumentos, preces. Sapopemba tem autoridade para fazer o que faz. A vida lhe concedeu essa autoridade, forjado dia a dia, quebrando pedra a pedra, em cada fogueira erguida no mês de junho e em todos os meses do ano dentro de si.

Sua voz recende a um encontro entre Dorival Caymmi e Mateus Aleluia, embora com tom e profundidade própria. É aquela voz que imediatamente inspira respeito e admiração. É uma voz que não pode ser ignorada. Que traz as marcas do tempo, a ancestralidade africana vivida no Brasil. É uma entidade, Sapopemba. E ele sabe disso.

É de Caymmi, aliás, a versão de “É Doce Morrer no Mar” registrada por Sapopemba no disco. Uma versão como só ele seria capaz de gravar.

“N’Zaze”, “Ori Dje Dje”, “Oxotocanxoxo”, “Oxóssi”, “Omá Beum” e “Rompe Mato” são alguns exemplos possíveis do brilhantismo raro de “Gbọ́”. 1 hora de aula magna sobre o Brasil que importa.

“É impossível compreender a música popular brasileira sem passar pelo terreiro”, afirma o texto do disco. Eu vou além: é impossível compreender o Brasil, sua beleza, sua dor, sua importância, suas contradições, seu povo, sua comida, seus deuses, sua política e sua cultura sem passar pelo terreiro.

Quer saber do que o Brasil é feito, vá ao terreiro. Quer entender porquê somos o que somos, vá ao terreiro. Quer diminuir a ignorância sobre o seu povo, as suas ruas, o que você come, bebe e como vive, vá ao terreiro. Ou não: não cabe proselitismo no candomblé, na umbanda e nos demais cultos africanos e populares. Você não verá ninguém te evangelizando a fazer obrigatoriamente isso e aquilo.

A vida é mais complexa que isso.

Da minha parte, o único proselitismo que me permito fazer é o musical. Ouça Sapopemba. Na música e nas histórias que ele conta – que transmite. Sapopemba é o remédio.

Sapopemba é um tipo raro. Tem razão em conservar certo rancor por não receber a atenção que merece diante de tanto lixo comercial que ganha um palanque imenso todos os dias, inclusive por gente que se julga esclarecida.

Existe um Brasil que interessa, um Brasil que importa, que pulsa e transpira por trás de toda a imundície da estupidez de massa. Sem qualquer traço de elitismo, pelo contrário, em nível absolutamente popular. É Sapopemba. A essência que se impõe pela grandeza. Conheça esse Brasil.

Sapopemba é o exato oposto de tudo que Bolsonaro, Paulo Guedes e cia representam. Sapopemba é o Brasil que o bolsonarismo quer destruir. O horror miliciano do ultraliberalismo que só conhece a destruição.

O Brasil que Sapopemba brilhantemente carrega é a cura.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Especiais