1% das propriedades rurais concentra 45% das terras agricultáveis no Brasil, que é o quinto país mais desigual do mundo em acesso à terra. A abolição da escravidão, que completou 132 anos em 13 de maio, só foi aprovada para evitar a reforma agrária. Ainda assim, o Brasil foi o último país das Américas a acabar – pelo menos oficialmente – com a escravidão.
Outro estudo recente do Imaflora e da UFMG mostrou que os 10% maiores imóveis rurais ocupam 73% da área agrícola do Brasil, enquanto os 90% menores imóveis ocupam somente 27% da área. Ou seja: é muita – muita – terra nas mãos de pouquíssimos ruralistas, com milhares de casos em que roubo de terras, invasões em áreas protegidas, assassinatos e ameaças se multiplicam.
De acordo com a CPT, o Brasil registrou 1.833 conflitos no campo em 2019, o maior número dos últimos cinco anos.
Uma MP editada por Bolsonaro em 2019 simplesmente dá de presente para bandidos a posse de milhões de hectares de terra roubadas. Transformada em projeto de lei, a proposta pode ser votada a qualquer momento no Congresso e é rechaçada por todas as organizações sérias desse país.
Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, é ex-presidente da “União Democrática Ruralista”, uma associação de criminosos do campo. Nabhan foi pessoalmente acusado de treinar milícias dentro das suas fazendas para matar trabalhadores rurais. Sim, você leu certo.
O responsável pela “reforma agrária” no governo Bolsonaro é um assassino de trabalhadores sem-terra. O MST é o inimigo oficial do governo fascista miliciano. E a turba de golpistas que tomou conta do poder via fraude nunca fez questão de esconder isso.
É nesse contexto brutal, ditatorial e inaceitável que a diretora Camila Freitas lançou o documentário “Chão”, que mostra a organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em Goiás, a ocupação de uma fazenda improdutiva de uma empresa que deve R$ 1 bilhão à União e a luta para que os direitos dos trabalhadores sejam respeitados e a Constituição também.
Como se sabe, o judiciário costuma ser “o terror de classe organizado”, um comitê para resolver os problemas da burguesia genocida, especialmente no Brasil, um dos países mais desiguais e mais violentos do mundo. E o caso mostrado no documentário é mais uma prova cabal disso.
Apresentado no Festival de Berlim em 2019, o documentário acompanhou durante 4 anos o acampamento Leonir Orback em Goiás. Em 2015, cerca de quatro mil pessoas ocuparam a terra, dentro de uma área de 15 mil hectares da Fazenda Santa Helena, do Grupo Naoum. O processo resultou em uma perseguição aos sem-terra pelo juiz da Comarca de Santa Helena e pelo Ministério Público Estadual, e na prisão de dois militantes por formação de organização criminosa.
A luta pela terra é A luta que define toda a história do Brasil até hoje. Entender e reportar isso é obrigação de todos nós.
E o documentário “Chão” funciona não só como documento da barbárie cotidiana e de uma luta organizada de forma absolutamente espetacular em dialogar com os brasileiros que importam, como funciona também como cinema. É cinema documental artístico com um nível altíssimo, raridade quando se trata de projetos do tipo.
A diretora foi muito feliz em captar todas as nuances do movimento, as conversas, esperanças, medos e a garra dos trabalhadores. As lembranças, as relações sociais e familiares, as estratégias, a cobertura enviesada para o lado negativo da imprensa, as decisões judiciais herméticas que favorecem os donos do poder.
A paisagem desoladora do monocultivo do agronegócio em contraste com a riqueza e a variedade da agricultura familiar, responsável por 70% do que você come. A injustiça e a violência de negar um direito fundamental. A Constituição cuspida e ignorada todos os dias. A realidade cotidiana e duríssima que os acampados vivem – uma realidade que os seus inimigos covardes e mimados não suportariam por um dia sequer.
O MST é o maior, mais legítimo e mais importante movimento social da América Latina e, certamente, entre os mais fundamentais do mundo. O Brasil ser o que é torna isso realidade. Organizado em 24 estados nas cinco regiões do país, são cerca de 350 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e da organização dos trabalhadores rurais.
Em julho de 2019 a 2º Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás cancelou, por três votos a zero, a sentença que ordenava a reintegração de posse do acampamento Leonir Orback, caso raro. 600 famílias vivem hoje no local.
No meio da pandemia que já matou mais de 35 mil brasileiros, tornando o Brasil o epicentro da Covid-19 no mundo graças a Jair Bolsonaro e o seu bando de milicos adoradores de torturadores, o MST já doou mais de 600 toneladas de alimentos produzidos sem agrotóxicos, por gente que luta pelo direito básico e inalienável de poder viver dignamente em um pedaço de terra.
Em uma sociedade ignorante, fascistizada e brutalizada pela elite mais sádica, grotesca e autoritária do mundo, falar do MST todos os dias não é suficiente. É uma obrigação. Conhecer, aprender e divulgar o que um movimento como esse faz é um dever.
E a mídia que vive de defender os interesses dos seus donos – os mesmos interesses de Bolsonaro, Paulo Guedes, dos militares, dos ruralistas e da plutocracia – tem um papel inegável na demonização do MST. Eu sinto asco e vergonha dos colegas que se prestam a esse papel.
O fato de “Chão” não ser sequer 1% assistido e comentado como “Democracia em Vertigem” foi – um documentário produzido por uma neta de empreiteiro bilionário – diz muito não só sobre a estratégia de marketing, os acessos e caminhos abertos para a distribuição e o “reconhecimento” (Netflix, Oscars, etc), como sobre o estado da “esquerda” atual.
Quem gosta de vomitar barbaridades como “a esquerda abandonou as suas bases e não dialoga com o povo, bla bla bla” precisa engolir a própria ignorância e conhecer o MST a fundo. Com “Frente Ampla” ou não, o MST está aí há quase 40 anos lutando de forma brilhante e direta por tudo aquilo de essencial que define o Brasil.
A luta do MST deve ser a sua luta. Se não for, azar o seu.