Por Maurício Angelo
Vamos pular a parte da “legitimidade” da “crítica cultural” brasileira em tempos de pulverização absoluta da “sociedade do espetáculo turbinada”, fragmentada e da velha ladainha de quem sempre ditou o “gosto dominante” ver a sua influência cambalear e/ou ir a zero. Vamos direto para a esquizofrenia dessa crítica na figura conhecida de Luís Antônio Giron, jornalista da Época e um dos nomes mais famosos quando se ainda fala em jornalismo cultural no Brasil.
Quatro anos atrás, em 2012, quando Michel Teló, no auge, estampou a campa da revista Época, Giron escreveu este artigo, defendendo (e de certa forma explicando) porquê Teló era relevante e de que forma a música verdadeiramente popular cravava seu espaço não só como algo adorado pela massa como relevante do ponto de vista caquético dos padrões que a crítica elitista sempre envergou. Também em 2012, no mesmo período, escrevi que o sertanejo é o verdadeiro independente brasileiro e, nos extras, recomendava o txt dele. Lucidamente, escreveu Giron (grifos meus):
De um lado, exulta o público que frequenta festas e baladas, rebola e se diverte com músicas de Teló como “Ai, se eu te pego (assim você me mata)”. De outro, bradam com indignação os eternos baluartes do bom gosto, que gostariam de ouvir o mundo povoado de sambas, clássicos e a boa música popular brasileira – a tal MPB, termo que agora seria apropriadamente trocado por “samba universitário”. Trata-se do retorno meio burlesco do antigo debate em torno de cultura de massa, popular e erudita. Burlesco porque essa era uma discussão da década de 60 do século passado. Tais divisões caíram por terra, e tudo se converteu neste século em mercado e estratificação de gosto. Vou tentar demonstrar que o sertanejo universitário de Teló, Luan Santana e Gusttavo Lima possui tanta legitimidade quanto a congada paulista, a chula gaúcha, o choro e o samba de morro carioca, entre outras manifestações musicais… quer gostemos ou nem tanto.
O texto – “Sertanejos Universais” – segue traçando um panorama dessa aparente dicotomia entre o que a classe média com delírios de “elite cultural” sempre acreditou em consumir e a cooptação desse mesmo extrato da população pelo sertanejo hedonista repaginado para a galera das “baladas tops” Brasil afora. Entre uma digressão histórica e outra, uma referência aqui, outra acolá, resvalando sempre no pedantismo torto praticamente exigido para abordagens do tipo, Giron finaliza:
Os sons distantes das baladas do sertão chegaram até o centro e os bairros sofisticados das grandes capitais do Brasil e agora conquistam o mundo. Agora não adianta evitar: somos todos sertanejos, somos todos universitários e mundializados. E como tudo está cada vez mais igual a tudo, não surpreende que o batidão de “Ai, se eu te pego” e sua coreografia simiesca tenha se transformado na nova “Macarena”, o sucesso da dupla espanhola Los del Río de 1996. O Brasil figura como uma das sete maiores economias do mundo, e sua música deve se impor como referência. Que seja via esses sertanejos que se revelam universais. O resto é preconceito.
Corta para 2016. O Michel Teló da vez é Wesley Safadão. Igualmente branco, loiro, de olhos claros, mas nordestino, egresso da banda Garota Safada, um dos inúmeros grupos a se apoderar de todos os estilos que tomaram conta do popularzão do Brasil nos últimos anos – forró, arrocha, sertanejo, pop, brega, etc – entregando tudo naquela fórmula pra dançar, exaltando a pegação ou a tiração de sarro com o ex-amor e temas derivados. Safadão ficou tão grande que adotou “carreira solo”, fazendo o que já fazia no Garota Safada mas colocando seu nome na linha de frente. Carismático, estourou de vez em 2015, empurrado pelas redes sociais e adotado de vez também pela elite. Safadão agora toca em estádios, não mais na periferia. Vai para centros da elite jovem endinheirada – Jurerê Internacional, por exemplo – e também para praias do interior. Safadão atinge todos os públicos, do A ao E. Do universitário ao analfabeto. Do sul/sudeste branco e podre de rico ao norte/nordeste em todos os extratos.
Mas parece que Luís Antônio Giron, quatro anos depois, teleguiado por um tendencionismo tosco e oportunista, o mesmo que, de um jeito torto, celebrava a autenticidade e os méritos do sertanejo “tipo exportação” de 2012 e que “o resto era preconceito”…não digeriu muito bem Wesley Safadão. Em artigo de 05 de fevereiro para o Valor Econômico, Giron cai em todos os clichês da crítica elitista e caduca que ele mesmo apontou lá atrás. Vejamos o que ele diz sobre o sertanejo, em trechos selecionados:
Independentemente do que o ouvinte possa pensar sobre a qualidade dessa música, o sertanejo está no governo – ou desgoverno – da cultura popular do Brasil. (…) Mas a MPB representa um nicho de classe média que passou a ser invadido por outros gostos e perfis universitários formados em faculdades suburbanas e de baixa qualidade. Eis como surgiu o sertanejo universitário, que ocupou as casas de show e de balada no país inteiro. Hoje o sertanejo universitário fez mestrado, doutorado e agora exibe orgulhosamente o diploma de livre-docência. (…) O sertanejo mostrou a sua capacidade de acolher, contaminar e até de controlar a difusão dos outros sons. (…) Não surpreende que o tema da melancolia e da saudade de um sertão distante tenha sido trocado pelo hedonismo absoluto, expresso nas baladas dos grandes centros urbanos, movidas a “open bar”, vaqueiros marombados contratados pelas casas noturnas, ensinando os últimos passos do arrocha aos jovens frequentadores.
Em 2012, no entanto, o mesmo Giron tinha uma opinião bem mais peculiar sobre o último sucesso de Teló, já navegando nos mesmíssimos temas.
Seu último sucesso, “Eu te amo e open bar” introduz, de forma inusitada, a sanfona na música dançante eletrônica do século XXI. Basta reparar como Teló se vale de refrãos de sanfona em meio ao batidão. Teló traz uma cadência mais sulista ao cabedal de síncope brasileira – e isso talvez seja o motivo de sua música ter pegado tanto no plano internacional. Por ser mais “dura”, mais marcada, sem abdicar da dançabilidade (acabo de forjar o termo, inspirado no vocabulário de videogame), ela é facilmente compreendida pelos estrangeiros.
Em 2016, Safadão termina por ser escolhido o símbolo de “tudo que está errado com o Brasil”, segundo Giron. O crítico revela uma capacidade rasteira de associação e uma compreensão pra lá de banal e intelectualmente questionável – digamos – da história, das entranhas, da política e da sociologia brasileira. Safadão, agora, representa a corrupção (risos!), a falta de ética (!), a ausência de caráter (!!), a crise de valores (!!!) em uma “música de péssima qualidade”. Sentencia ele:
É como se Wesley Safadão sintetizasse a alma brasileira e atingisse a sua essência. Nestes tempos de alegre e generalizada corrupção, só mesmo um Safadão poderia orientar as esperanças da população. Crise de valores do povo brasileiro? Ou a eterna ausência de caráter do brasileiro que sempre retorna, sob a forma de música de péssima qualidade? Ambas as coisas.É preciso constatar que aquele que era o patinho feio da deslumbrante música brasileira se tornou o seu sumo pontífice. O sertanejo simboliza os desejos de festa e amor, os anseios de inclusão cultural, a falta de ética e de política de uma nação. O sertanejo é a música pop do Brasil.
O que explica tamanha diferença de abordagem sobre um mesmo tema, pelo mesmo crítico, com um espaço de tempo de 4 anos? Talvez a necessidade de corroborar o que o senso comum da nossa classe média andou vomitando nas ruas desde a reeleição de Dilma Rousseff. Talvez Giron desistiu de disfarçar o seu inegável horror ao popular, presente nas entrelinhas do texto de 2012, arrotando mazelas críticas antiquíssimas e ainda presentes no imaginário geral. Talvez porque, ei, apenas meia dúzia de jornalistas, se muito, se ligam nesse tipo de coisa. Tudo verdade. E além.
Discutir os méritos e os pontos nebulosos de Safadão – como a máquina de se apropriar de todas as músicas que fazem sucesso Brasil afora, produzindo versões como se fossem dele sem os devidos créditos, uma regra entre os artistas do tipo – ou o fato de receber um dos maiores cachês do país (R$500-700 mil, dependendo do freguês) e pagar salário de R$ 2-3 mil para seus músicos de apoio, ameaçando demitir toda a banda quando o assunto vazou recentemente – é mais difícil que atacá-lo da maneira mais rasa possível. O Brasil de Safadão, diga-se, também é o mesmo de MC Bin Laden.
A mudança de postura de Giron, não por acaso, reflete muito do nosso jornalismo, da nossa crítica e da mentalidade da nossa elite, cultural, política e sociologicamente falando. Um Wesley Safadão incomoda muita gente. Especialmente a parcela do Brasil que Luís Antônio Giron representa.