Por Maurício Angelo
Há um motivo muito simples que explica a condescendência que a comunidade do metal costuma tratar os inúmeros exemplos de comportamentos racistas, machistas, homofóbicos, xenófobos e extremistas em geral, como assinalou Axl Rosenberg do Metal Sucks: nós somos covardes (aqui ou aqui).
O recente quiproquó que os gestos e berros racistas de Phil Anselmo provocou, ex-vocalista do Pantera, uma das bandas mais amadas da história do gênero, é só mais um símbolo dessa mesma covardia: sem isso, nós continuaríamos a ignorar as atitudes não só de Anselmo, mas de todos que temos ignorado ao longo do tempo. Phil é reincidente. Há 30 anos que ele anda por aí espalhando esse tipo de coisa, de forma velada ou descarada. 30 anos em que a “passada de pano” foi completa: é “bobagem”, “deixa ele”, “só ignorar”, “tava doidão”, “ele não acredita realmente nisso” e um sem número de desculpas esfarrapadas que costuma povoar a cabeça de fãs acéfalos.
httpv://www.youtube.com/watch?v=rVaUlXfvOHg
Nós passamos o pano também para Lemmy Kilmister, notório colecionador de memorabília nazista. Lemmy refutou várias vezes as acusações de que seria um simpatizante da “ideologia nazista”, considerando os milhares de itens que colecionava. Sempre afirmou que isso era absurdo e seu interesse era “histórico” e “estilístico”, que ele não dava a mínima para a cor das pessoas e por aí afora. Nós passamos o pano. Até onde se sabe, é verdade, Lemmy nunca foi visto gritando “poder branco”, fazendo sinais nazistas em cima do palco ou discriminando abertamente pessoas. Ainda assim, quando “relevamos” este tipo de postura, a estupidez triunfa e o mundo perde mais um pouquinho.
O metal, que Lemmy ajudou a fundar, não pode ser considerado exatamente um meio de ideias “avançadas” ou qualquer termo que você quiser usar. Há um motivo pela qual Rob Halford, vocalista do Judas Priest e igualmente um dos “pais” da coisa toda, só veio assumir publicamente sua homossexualidade no final dos anos 90: era algo “impensável” para os “metaleiros”, ainda que vindo de uma das maiores autoridades do gênero, o “Metal God”, como é chamado.
Phil Anselmo é reincidente e influente. Este outro texto, da Metal Hammer, segue a mesma linha: as atitudes de Anselmo não podem ser ignoradas. Mais que isso: o texto de Paul Brannigan cita exemplos fartos da ficha corrida do vocalista do Pantera. O “pedido de desculpas”, depois se ser pego no flagra, é ridículo e patético como o são praticamente todos os pedidos de desculpa do gênero: fazem somente pela pressão, não porque acreditam naquilo.
httpv://www.youtube.com/watch?v=fCBKzWg4WYo
Robb Flynn, líder do Machine Head, uma banda com história e estofo extremamente relevante e que esteve no evento em homenagem a Dimebag Darrell (contexto que deixa tudo mais triste ainda) teve a coragem que pouquíssimos do meio tiveram: confirmar o episódio, com mais detalhes de bastidores e reforçar que o metal não pode, em hipótese alguma, continuar a aceitar esse tipo de coisa. Versão traduzida do vídeo aqui.
Episódios de intolerância religiosa são fartos (em 2013, escrevi um texto sobre isso tendo como gancho um fato ocorrido contra a banda norueguesa e cristã Antestor), o machismo é regra geral, basta ver as letras de qualquer banda de hard rock (as letras do sertanejo e de alguns funks parecem feministas perto destas), a xenofobia no black metal é celebrada exaustivamente (alguém falou Drudkh?) e, não bastasse tudo isso, a maioria dos metalheads também é reacionária, especialmente no Brasil, com exemplos de integrantes de bandas nacionais encampando o impeachment de Dilma Rousseff da maneira mais patética possível.
Óbvio, colocando em perspectiva, são exceções, não a regra. O metal é composto por milhares de bandas, sub-estilos, pessoas e inclinações diferentes. Por mais que tudo isso seja facilmente identificado em muitas bandas por aí, não são a maioria.
Mais que isso, retornamos para aquela velha discussão: você deve deixar de curtir a obra de um artista porque a sua postura pessoal em certos assuntos é inaceitável para você? Não existe resposta fácil. Na literatura, por exemplo, tivemos recentemente a “descoberta” de que Fernando Pessoa era racista. Isso invalida a sua condição de maior poeta da história da língua portuguesa e eu devo queimar todos os seus livros? Devo jogar no lixo todos os discos do Pantera?
Nesta linha, os exemplos são inúmeros. O que sei é que o mundo não (deve) ser binário e maniqueísta. E tudo é mais complexo e cinzento do que gostaríamos de admitir. O que sei, igualmente, é que atitudes como as de Phil Anselmo, por sua história, alcance e relevância, não podem mais ser jogadas pra debaixo do tapete do senso comum. Não podemos mais fingir que estes dilemas não existem e que muitas figuras que adoramos artisticamente são também desprezíveis em suas “ideologias”, posições políticas, extremismos e estupidez. Não ser cúmplice, no entanto, já é alguma coisa.