“Só vai sobreviver escolhido, muita arma, muita droga, pouco dinheiro e pouco perdão” / “repressão é a prova mais concreta que o sistema nos oprime” / “a vida não é só de desvantagem, humilde malandragem, esse é o som do Sabotage”.
Assim começa a “Introdução” de “Rap é Compromisso”, na verdade uma carta de intenções de Sabotage, catapultado a mito após ser assassinado em 2003 aos 29 anos em condições ainda não muito claras.
15 anos após seu primeiro lançamento, em 1999, o disco sobrevive absurdamente bem e comprova que todas as loas recebidas por Sabotage são merecidas. Seja nas letras, nas rimas, nas batidas e no flow, “Rap É Compromisso” está entre os melhores discos do rap brasileiro em todos os tempos – perdendo somente para “Sobrevivendo no Inferno”, do Racionais – e faz bonito mesmo se comparado a qualquer clássico mundial.
Relançado em edição especial no Itunes com duas faixas bônus – “Rap é Compromisso” e “Um Bom Lugar” em versão instrumental, o disco tornou-se referência imediata para qualquer rapper brasileiro que se queira levar a sério, estabelecendo um padrão dificílimo de ser alcançado – e que, na verdade, nunca foi.
Mauro Mateus dos Santos ganhou livro “Um Bom Lugar”, de Toni C., documentário “Sabotage – O Maestro do Canão”, de Ivan Ferreira e a promessa de um disco inédito que ele supostamente teria deixado praticamente pronto antes da sua morte produzido também por Daniel Ganjaman com 14 faixas inéditas e adiado várias vezes. Do disco, surgiu apenas a nova – e ótima – “Canão Foi Tão Bom”, em 2012.
httpv://www.youtube.com/watch?v=Zf4q4ylWUbA
A ligação visceral e a referência constante de Sabotage com a favela em que vivia, na zona sul de São Paulo, escancara o quanto o rap tem a característica fortíssima de explorar as suas raízes e as origens de cada músico no que produzem.
“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo…
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura…”
Este trecho de famoso poema de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, exemplifica perfeitamente o quanto o rap leva ao extremo a ideia de “minha aldeia é o mundo”. É na sua quebrada que a vida acontece, as relações são criadas, as coisas se desenvolvem, o conflito e o gozo convivem. Da sua aldeia é possível retirar toda a complexidade que a vida permite. São muitas as faixas de “Rap É Compromisso” que carregam na alma essa origem. “Um Bom Lugar”, a primeira faixa que foi carro chefe do álbum na época – irresistível e com a capacidade de pegar pela jugular como poucas – “No Brooklin”, “País da Fome” e “Na Zona Sul”, em que Sabotage manda:
httpv://www.youtube.com/watch?v=K3E8WCkVyoM
“é zona sul, maluco, cotidiano difícil, mantenha o proceder, quem não conter tá fudido, eu insisto, persisto, não mando recado, eu tenho algo a dizer, não vou ficar calado”.
Poucos conseguiram serem tão crus e leves com a mesma intensidade quanto Sabotage. O roteiro de vida é parecido: moleque na extrema pobreza entra pro crime e encontra na música a redenção. Premonitório, Sabotage canta em “Incentivando o Som”: “sou zona sul, sou programado pra morrer”.
“Cocaína” é um deleite – e quem hoje em dia consegue atingir um flow desse nível?
“Eu deixo um salve pros manos das ruas da sul / Do Brooklin da Femelin, do Anhangabaú/ Da Catarina espraiada, Itapevi, Fundão, Caracas / Barueri, Jardim Peri é logo ali / São vários jogo do baralho marcado / É foda, é ver meus manos nesse estado / Irmãos que desandaram, viajaram não ficaram lúcidos / Chupando manga só o pó sujo / Imundo é foda essa parada / Sujeito a tudo ou nada / Só fita furada, tá devendo e nunca paga / Em outras áreas recebe o nome de canalha / Irmão se for parar então que faça já / Porque vários já morreram, foram em cana, enfim / Não quero isso pra eles e nem quero pra mim”
httpv://www.youtube.com/watch?v=XKwxr_X4iMw
Sabotage também soube escolher as parcerias aqui: Negra Li, Black Alien, RZO, Rappin’ Hood, Sombra e Bastardo, Chorão…todos acrescentam bastante na parte que recebem. “Respeito é Pra Quem Tem” é um hino, uma das melhores e mais incisivas canções produzidas no Brasil. E é incrível o quanto “Rap é Compromisso” não cansa, não vence, não se repete em demasia. Pelo contrário, a intensidade do “fator replay” nos 50 minutos do álbum é altíssima.
Gigante em disco, Sabotage ainda foi consultor – criando o estilo do personagem principal de Paulo Miklos – e fez participação especial num dos melhores filmes dos anos 00, “O Invasor”, de Beto Brant, injetando frases e gírias como “acabou a gozolândia” e “dedo de gesso”, além de participar também do “Carandiru” de Hector Babenco. Anísio, inclusive, encarnado por Miklos, retorna ao ponto do “seu lugar”, sua favela, onde se sente em casa, seu hábitat natural, peça importante do filme claramente influenciado pelo rapper.
httpv://www.youtube.com/watch?v=3z7Ii3ezG0A
O outro disco disponível de Sabotage é a coletânea “Uma Luz Que Nunca Irá se Apagar”, trazendo várias canções lançadas pelo rapper solo ou em conjunto com outros artistas, como “Cabeça de Nego”, “Dama Tereza”, “Mun-rá”, todas com o coletivo Instituto, “Dorobo” com B Negão e “Black Steel In The Hour Of Chaos”, releitura do Public Enemy em versão do Sepultura. Outro registro obrigatório do talento imensurável de Sabotage.
httpv://www.youtube.com/watch?v=tWQ-kEhtTmA
Nunca saberemos o que seria do rap nacional se a tragédia que tirou a vida do Maestro do Canão não tivesse ocorrido. É de se imaginar que Sabota continuaria construindo uma das carreiras mais impressionantes da história desse país. Ouvir continuamente “Rap é Compromisso” é ter a certeza absoluta do quanto perdemos, do quanto Sabotage é insubstituível, do quanto faz falta. Do quanto podemos desfrutar do testamento precoce de um monstro raro da rima, da música e da sonoridade única da periferia genuína.