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Emicida: a prisão e a histeria

Nesta altura você provavelmente já sabe que o rapper Emicida foi “preso” após um show ontem, na região do Barreiro, em Belo Horizonte, por desacato. O problema foi na introdução da música “Dedo na Ferida”, que por si só é um protesto contra o abuso policial. Emicida incitou o público a dar um dedo do meio para a polícia e teve que se explicar depois. A história oficial do lado do rapper foi contada no site oficial dele. 

Tempos complicados. Emicida é um exemplo recente e talvez o rapper de maior “sucesso” no Brasil hoje. Se já não é, tem tudo para se tornar um dos grandes, apesar de, pra mim, seu show ao vivo não ser lá essas coisas. Mas a questão aqui vai muito além da música: é um apelo quase irresistível que, diante de um caso desse, nossa reação imediata seja “descer o pau” na polícia. O levante nas redes sociais foi instantâneo: absurdo, ditadura, retrocesso, atentado à liberdade de expressão, preconceito, abuso, etc.

A polícia é um alvo fácil, é verdade. Sabemos bem, comete abusos de poder (e tudo que isto proporciona) frequentemente. Tem a imagem de corrupta, irremediável, autoritária. E muitas vezes é. Cumpre às cegas as ordens de quem a governa (que, em tese, seria o povo). Casos recentes não faltam: Pinheirinho, Cracolândia, USP e o próprio combate a uma invasão na mesma região do Barreiro, um dia antes, no terreno Eliana Silva.

Apenas daí é de se imaginar que os ânimos e a tensão entre polícia e população do Barreiro, quase uma cidade com vida própria de Belo Horizonte e predominantemente de renda baixa, estejam lá em cima. Convocar o público a dar um “dedo do meio” e “mandar todos eles se fuder” parece uma provocação boba, comum e adolescente, ainda mais no meio do rap. O vídeo abaixo registra o momento.

httpv://www.youtube.com/watch?v=GMTigF95s3Y

Pelo contexto, imagino que os policiais lá presentes não tenham gostado nada disso. Justifica uma detenção (na verdade Emicida foi chamado para prestar esclarecimentos na delegacia)? Do ponto de vista da maioria, não. É uma posição um tanto inflamada da polícia, levando a ferro e fogo uma provocação? Sim. Constitui, segundo a lei, desacato? Sim. É absurdo? Rigorosamente, não. Sem falar no tanto de situações do gênero (e de músicas) muito mais incisivas e duras que temos por aí, no rap nacional e estrangeiro.

Nós da classe média adoramos condenar a polícia. Chamá-los de corruptos, filhos da puta, ditatoriais, incompetentes, etc. Como sempre, seja na polícia, no jornalismo ou em qualquer área, a banda podre contamina a reputação de todo mundo. Mas quando precisamos dela, quando a polícia se faz necessário, aí ficamos quietinhos e vamos correndo. Polícia para quem precisa.

Há uma tendência forte da demonização da força policial nesses tempos de repressão intensa. Na música, inclusive. A polícia de Belo Horizonte anda adotando fortemente os piores hábitos possíveis. Não por acaso por ter no comando um prefeito, Márcio Lacerda, repleto de medidas restritivas no mínimo questionáveis: como retirar mesas e cadeiras de calçadas de bares, por exemplo, uma instituição da capital mineira. O cercamento da Praça da Estação. E várias outras proibições, medidas e ações do gênero tomadas nos últimos tempos.

O que nós custamos entender é que fazer cumprir a lei, por mais que eu não concorde com ela, ou que soe exagerada para os meus critérios, é um dever de quem trabalha com isso. Outro caso recente foi de Karina Buhr, que incitou os fãs nas redes sociais a espalhar que ela tinha sido proibida de fazer um show em SP porque foi pega fumando maconha no camarim. Deu outro bafafá e no fim das contas o show aconteceu.

Por mais que eu ache que a maconha deveria ser legalizada (e realmente acho) e que uma imensa parte das pessoas que eu e você conhecemos fume, ou que 95% dos músicos usem (e eles usam), a posse de maconha em determinadas quantidades é crime. E você pode, sim, no mínimo ser repreendido por fumar, já que é uma droga ilegal. Eu acho extremo a lei seca que foi instituída no país há alguns anos. Evito ao máximo beber e dirigir. Mas todo mundo que eu conheço, absolutamente todo mundo, bebe e dirige sempre, em vários estados. Ninguém pode reclamar, inclusive eu, se for pego na lei seca. É dura demais, eu acho, mas novamente a quantidade imensa de babacas e de mortes no trânsito, somada a uma mentalidade de punição pela solução, que a criou.

Tem muita coisa errada na criação, formação e discussão das leis (ou na ausência desse debate). Tem uma enormidade de leis absurdas que são criadas. Mas a patrulha da classe média “liberal”, o que inclui algumas dezenas de amigos e das pessoas que eu conheço e circulo, muitas vezes também passa da conta e abraça uma histeria coletiva sempre que algum privilégio que ela julga merecer é atacado. Sempre que algum artista querido por ela é repreendido por alguma coisa. Sempre que ela não pode continuar fazendo tudo que sempre quis. Se antes existia a patrulha do “politicamente correto”, hoje a patrulha do “liberalismo” – na falta de um termo melhor – é igualmente insuportável.

Para Emicida, indiretamente, gerou um baita resultado. Menção do caso em tempo real no Fantástico da Globo, discussões e trending topics nas redes sociais, dezenas de posts e comentários que colocam seu nome e sua música em evidência. Tentar escapar da tentação da condenação automática é difícil. Conseguir enxergar com mais lucidez e se colocar no lugar do outro – o policial honesto que está ali recebendo um salário horroroso, numa situação tensa naquela região e naquele dia, fazendo a segurança do seu show e que é recebido com um dedo do meio e um foda-se, também.

Além de todo abuso de poder que acabamos convivendo, não só da polícia, também tenho um receio muito grande desse pensamento viciado e tendencioso que nós da classe média (e outras) abraçamos com uma fervorosidade digna da cegueira.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Cena BR Destaques