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O Som Ao Redor e o melhor da construção

Kléber Mendonça Filho construiu uma carreira pra lá de interessante. Como crítico por quase 20 anos do Jornal do Commercio de Recife e do site CinemaScopio, criado por ele, era um dos melhores do país. Longe dos vícios de abordagem comum aos colegas de profissão e também do oba-oba gratuito costumeiro, KMF começou a produzir curtas em 1992 e foi reconhecido por crítica, público e premiações até “Recife Frio”, o último curta antes de resolver largar a estafa da carreira de crítico (do qual fez um documentário abordando a profissão). Falei um pouco sobre os curtas de Kléber aqui, a maioria disponível no Vimeo.

Toda a inteligência, o cuidado e a aproximação lúcida e certeira que KMF costumava fazer da vida humana retratada nos filmes, trouxe para “O Som Ao Redor”. Exaustivamente premiado em festivais internacionais e brasileiros, o longa, que estreia hoje oficialmente nas salas do país, já está sendo considerado pela crítica um dos melhores já realizados no Brasil. E merece.

Como o título revela, a engenharia sonora e a captação do som ambiente é fundamental, caro e atua como um próprio personagem na película. Se cada cidade tem seu som, seu cheiro e seu clima, Kléber vai no cerne da sua própria história, filmando na rua onde vive nas últimas décadas.

httpv://www.youtube.com/watch?v=rj0eeHW7lXU

Poucas vezes você irá encontrar um filme brasileiro que congrega de maneira tão satisfatória a história urbana e rural, os medos e a paranóia da violência e o terror, o humor implícito nas conversas do cotidiano, o ridículo da classe média (nós), o conto da oligarquia patronal que ainda domina boa parte das terras e do comportamento desse país. Kléber captura tudo isso de maneira aparentemente despojada, ainda que sempre tensa, desde o início com as crianças brincando numa quadra do bairro até as incursões de suspense repentinas, como a cachoeira que se torna sangue.

Parte disso deve-se à admiração e influência profunda que tem de John Carpenter, presente há muito no seu trabalho nos curtas metragens. Naturalmente, há um pouco deles em “O Som Ao Redor”. As pulsões sexuais de “Eletrodoméstica”, o suspense e o terror de “A Menina do Algodão” e “Vinil Verde”, o “sobrenatural” de Recife Frio e a paranóia e a violência urbana extremamente Carpenter de “Enjaulado” e assim por diante.

WJ Solha como “Francisco”, o ex-senhor de engenho que é dono do bairro e o misterioso Clodoaldo vivido por Irandhir Santos, que chega para “oferecer mais segurança” para a classe média são o centro do filme, costurado pelo João de Gustavo Jahn, um cara comum como eu e você, elevando a opção de Kléber em trabalhar com gente normal, alguns selecionados através de um anúncio de jornal.

De fato, é fácil se identificar com o cotidiano daquela rua, daquele bairro e daquelas pessoas. Você conhece gente assim, sua família provavelmente possui tipos iguais e você mesmo se vê inserido dentro daquilo. Não há nada aqui que seja gratuito ou ligeriamente estúpido como um penduricalho desnecessário. Não há nenhuma pretensão que não seja legítima, realizada por quem tem domínio daquilo, conhece e sabe exatamente o resultado que quer. Os diálogos e o roteiro constroem um ambiente de cumplicidade com o espectador ao mesmo tempo que o convida a refletir ou rir dos próprios preconceitos, medos e hábitos.

Uma estreia espetacular de um diretor que tem tudo para se consolidar como um dos melhores cineastas brasileiros pelas próximas décadas, seja lá quais armadilhas o mercado ou a vida podem criar.

* Visto no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em setembro de 2012.

* Lançamento oficial no mercado nacional hoje, 04 de janeiro.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Cinema Destaques