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12 Anos de Escravidão: o testamento de Steve McQueen

Por Maurício Angelo

A escravidão no cinema, de maneira geral, sempre foi tratada de modo caricatural, ameno, sem grande profundidade histórica e, às vezes, até de maneira romanceada, com sua brutalidade quase relevada, quase que um pedido de desculpas com um sorriso amarelo. Até hoje. “12 Anos de Escravidão”, baseado no livro e na história real de Solomon Northup, é um verdadeiro testamento do cineasta Steve McQueen. E foi preciso um diretor negro e inglês (de 45 anos) para mostrar ao cinema americano (e mundial) como filmar uma história legítima de escravidão, com um senso de realidade tremendo.

Northup, um homem livre, é envolvido numa emboscada, embriagado e acorda no outro dia como um escravo, longe da família e sem nenhum recurso para se defender, na primeira cena brutal da película, que ditará o tom do que Northup enfrentará a partir dali. Chiwetel Ejiofor encarna com precisão a dureza e a gravidade do papel. Os momentos de desespero, de incredulidade, de angústia, medo, de compartilhar a vida na senzala com os outros escravos, sempre no tom certo, sóbrio, entregando uma interpretação segura e vívida, sem jamais carregar no peso dramático que a própria situação pede. O tempo todo Northup precisará esconder seu talento – para tocar violino – sua inteligência para resolver problemas que supostamente só os homens brancos são capazes, fingir que é analfabeto, fingir que respeita a hierarquia doentia que esse mundo passou tanto tempo aceitando como normal.

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Ejiofor é brilhante e seríssimo candidato ao Oscar ao lado de Matthew McConaughey em Dallas Buyers Club. Michael Fassbender, colaborador assíduo de Steve McQueen, também está esplêndido em seu papel como o senhor de escravos que Northup passa a maior parte do tempo. Cruel, austero, alcoólatra e apaixonado por uma escrava, a quem estupra e tortura com frequência, Fassbender é a escolha certa para o papel, sempre dúbio e paradoxal.

Com “12 Anos de Escravidão”, McQueen finca seu nome na história do cinema. Sai do gueto “alternativo”, da aura de autor underground que conquistou com o bom, ousado (e superestimado) “Shame”. Esta nova obra encontra-se alguns passos além do filme que o revelou para o mundo. É madura, belíssima, chocante, dirigida com segurança, ancorada num realismo sem filtros coloridos, sem verniz excessivo, sem aura cool, que não cabe aqui. A pesquisa histórica realiza por McQueen (ao lado de Henry Louis Gates) é excelente (e recomendo muito esse artigo do Guardian sobre isso, aqui).

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Impecável em todos os sentidos – inclusive técnicos, como a fotografia e a montagem, etc – “12 Anos de Escravidão” merece ser lembrado e assistido para todo o sempre, inclusive para que não sejamos capazes de continuar a manter bem enterrada nossa história vergonhosa (especialmente para a escravidão na América Latina, muito maior que a do hemisfério norte), nosso apartheid social e nosso racismo, que explode na nossa cara todos os dias e é convenientemente enfiada nos nossos “elevadores de serviço”, nos “quartos de empregada” e tantos outros resquícios do gênero.

“12 Anos de Escravidão” é mais que cinema. É um direto no queixo, nocaute certo e necessário.

Mais: uma sessão, uma conversa sobre o filme

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Cinema Destaques