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“Lindo Sonho Delirante” resgata a história da música psicodélica brasileira

Não há como definir o que é “psicodélico” sem ser algo que abarque uma infinidade de coisas, possibilidades, explorações musicais, estéticas, conceituais, líricas, uma confluência de aspirações mais ou menos lisérgicas, um movimento, uma vibração, um efeito de guitarra, as portas da percepção, um certo descompromisso com a formalidade. É essa abordagem bem elástica que o jornalista Bento Araújo, do Poeira Zine, traz para “LSD: Lindo Sonho Delirante – 100 discos psicodélicos do Brasil”, trabalho de fôlego, caprichoso e um importante compêndio em edição de luxo do muito que se produziu neste país do icônico ano de 1968 – para a música e a sociedade – até 1975, terminando no mitológico “Paêbirú” de Lula Cortês e Zé Ramalho, disco-testamento, disco-manifesto, símbolo máximo em imersão e qualidade dessa história toda.

Claro, opções precisam ser feitas e acabar em 1975 é uma delas, assim como 100 discos são “apenas” 100 discos. Portanto, fica de fora tudo que surgiu depois, incluindo a turma que “resgatou” essa influência nos anos 90/00, seja Júpiter Maçã, do RS, seja Mopho, de Alagoas, o Cidadão Instigado, do Ceará, seja mesmo o questionável Boogarins, de Goiás, vindos de regiões distintas do país, para citar somente alguns, o que prova que a música “psicodélica” permanece em voga, aqui e no mundo, indo e vindo em ondas de interesse mais ou menos intensos.

Financiado por um bem-sucedido crowdfunding, o livro vem em edição bilíngue e colorida de 232 páginas em papel couchê, com micro resenhas e apresentações de cada disco, com um breve contexto histórico, dos integrantes e na verve sonora de cada um. Por isso o preço: R$120. E, pelo pouco espaço, Bento precisa se ater somente ao básico de cada bolacha, mas o faz muito bem. Mesmo que tenhamos uma profusão de discos dos Mutantes, de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Novos Baianos e cia – na minha visão não precisaria citar tantos discos de cada um destes e outros medalhões, abrindo espaço para nomes menos conhecidos – o garimpo feito por Araújo está bem acima da média, debruçando-se em compactos obscuros e discos totalmente esquecidos, como é o caso de Pedro “Sorongo” Santos, Equipe Mercado, O Bando, Bango, Spectrum, Karma, Tribo Massahí, Satwa, Paulo Bagunça e a Tropa Maldita, Marconi Notaro, Arnaud, Sérgio Ricardo e cia ltda.

Além de muita MPB, especialmente os tropicalistas e a turma mezzo “maldita” mezzo “experimental” dos anos 60 e 70 (todos os nomes que você espera constar aqui, como Jards Macalé, Tom Zé, Ronnie Von, Gal Costa, Jorge Ben, João Donato, Erasmo Carlos, Clube da Esquina e cia, além dos já citados), há também muitos discos de grupos de vida brevíssima, que lançaram somente uma ou duas obras e, às vezes, somente um compacto ou que passaram completamente batidos por mídia e público ao longo da carreira, caso de Os da Bahia, Suely e os Kantikus, Quarteto Nova Era, Liverpool, Os Lobos, Blow Up, Free-son, The Gentlemen, etc, com expoentes da psicodelia que conquistaram reconhecimento com o passar dos anos, caso de Ave Sangria, Som Imaginário, O Terço, Módulo 1000, A Bolha, Som Nosso de Cada Dia, Moto Perpétuo, A Barca do Sol e Casa das Máquinas.

Do primeiro time (e mesmo trabalhando com as aventuras iniciais de muitos do segundo) impressiona o quanto realmente Rogério Duprat é a eminência parda aqui. Sua presença é constante, decisiva e inquestionável, arquitetando muito do que foi produzido dos discos citados. Em suma, “LSD” é um trabalho típico de apaixonado, um colecionador e pesquisador inveterado, como é o caso de Araújo, garimpeiro dos bons, o que permite ao livro sobressair-se como documento histórico inédito que mescla o melhor dos medalhões que revolucionaram a música brasileira com nomes absolutamente marginais que merecem atenção. Para ler, guardar, divulgar, pesquisar e ouvir.

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Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Livros