OU: como o “capitalismo soberano” é obrigado a enfrentar seus paradoxos e chafurda na pior crise desde 1929.
The party is over. A farra foi pro saco. Tá todo mundo passando o chapéu. 100% Off. E ninguém quer. Pode tocar a marcha fúnebre.
15 de Setembro de 2008 foi o marco simbólico do efeito dominó que estaria por vir. O Dia D (de desgraça), quando a cartilha neoliberal teve que ser deglutida goela abaixo pelos seus mais ferrenhos defensores.
O ano, aliás, não tem sido generoso para o capitalismo: primeiro veio a crise dos alimentos, que subiram em média 83% nos últimos três anos de acordo com o Banco Mundial. 100 milhões de pessoas caíram para abaixo da linha da pobreza, vivendo com menos de 1 dólar por dia. E, embora se saiba as causas, a solução está longe de vir e nem é um processo rápido. Ao contrário, a previsão é de que o preço dos alimentos continue alto nos próximos 10 anos.
Mas, sublinhe-se, esta é uma crise que afeta principalmente os mais pobres. Os quase “não-consumidores”. Embora global, de menor proporção. A classe média continuará a arcar com o grosso dos custos, agora um pouco mais soterrada e os extratos A e B seguiriam praticamente invulneráveis. Logo, era apenas um pequeno incômodo para os mercados. Um detalhe a mais no balanço da economia mundial no fim do ano.
Tudo toma outra dimensão quando 29 bancos estadunidenses pedem falência: até agora.
Em poucos dias, dois dos principais bancos de investimento do mundo, o Lehman Brothers e o Merrill Lynch, quebraram. Somente o Lehman Brothers (considerada a empresa mais admirada do mundo em 2007 pela revista Forbes) reconhece prejuízo de 400 bilhões de dólares vindo de clientes inadimplentes. Ou seja, calote, puro e simples. Outro dos gigantes, o Bear Stearns, já tinha ido embora em março, sendo comprado pelo JP Morgan com uma ajuda de 30 bilhões do FED.
Peer Streinbrueck, ministro das Finanças da Alemanha, exemplifica: “todos os que enxergavam uma luz no fim do túnel agora se dão conta de que essa luz é uma locomotiva que está indo em sua direção”.
Bom seria se fosse “só” isto. A maior seguradora do planeta, a AIG, também foi à bancarrota, perdendo mais de 80% de seu valor de mercado. Fannie Mae e Freddie Mac, as maiores empresas do mercado hipotecário estadunidense, chegaram ao zero, decretando falência. Fora os já citados, nomes como Washington Mutual, National City Corp, Countrywide Financial e Wachovia perderam entre 68 e 90% do seu valor, indo a UTI. JP Morgan, Goldman Sachs e Morgan Stanley, que ainda resistem, podem ser os próximos, se não tomarem cuidado. O Stanley, a propósito, ironia das ironias, está próximo de vender 50% do seu capital ao CIC, o fundo de investimento estatal chinês.
Todos os nomes citados eram, até então, empresas quase inabaláveis do sistema financeiro. Ícones da robustez e da vitória moral, econômica, teórica e prática do capitalismo. Os Estados Unidos, nação mais forte e próspera da história, amarga alguns dos piores números de sua existência: previsão de 1,3% de crescimento do PIB em 2008, taxa de desemprego a 5,7%, inflação a 5,6% e um déficit nas contas públicas, até o momento, de 482 bilhões de dólares. Isso antes da maioria dos pacotes anunciados. Ainda, segundo um estudo da Comissão Européia, bancos de todo mundo registraram perdas de 500 bilhões de dólares apenas nos últimos meses.
É precioso lembrar ao atento leitor, além do impacto factual e indiscutível de que estes números representam, o que isto significa em termos globais para além da obviedade do caos econômico: a primeira crise sistêmica no cerne da ideologia capitalista desde o crack da bolsa de Nova York, em 1929. É a primeira vez, desde o “decreto do fim da história”, assinado por nosso sempre querido Francis Fukuyama, em 1989, que o modelo de auto-regulação do mercado sofre seu baque fundamental e se afunda em suas próprias contradições.
A “mão invisível” de Adam Smith agora tem nome: Ben Bernanke (Federal Reserve), Henry Paulson (Tesouro EUA) e George W. Bush. O Estado, que deveria sempre se ausentar de sua influência no mercado, é a tábua de salvação do sistema. É dele o pacote de 700 bilhões de dólares anunciados para salvar a economia estadunidense (sendo 180 bilhões de imediato). É ele que já havia intervido três vezes antes para tentar evitar uma crise maior: no empréstimo para a compra do Bear Stearns, ao assumir o controle da Fannie Mae e Freddie Mac, gastando 200 bilhões para tentar recuperá-las e na fracassada tentativa de encontrar um comprador para o Lehman Brothers.
Nouriel Roubini, um dos economistas mais respeitados do mundo, ex-assessor da Presidência dos EUA durante o governo Clinton e professor da Universidade de Nova York, vai direto ao ponto. Para ele: “A transformação dos Estados Unidos em USSRA (Estados Unidos Socialistas da República da América) já ocorreu. Os camaradas Bush, Paulson e Bernanke simplesmente socializaram o prejuízo dos ricos.”
A cavalaria veio com força. Além dos recursos já citados, os principais bancos mundiais se uniram para despejar mais dinheiro no sistema, de 18 de setembro em diante: o FED colocou a sua parte, 180 bilhões, o Banco da Inglaterra, 45 bi, o Europeu, 55 e o Japonês, 117. Vai um trocado aí?
O pânico espalhado pela quebra de tantas instituições importantes empurram o planeta para uma crise sistêmica avassaladora, que não dá sinais de estanque. Ainda pouco se sabe se as medidas desesperadoras do governo estadunidense e bancos mundiais surtirão efeito para amenizar o quadro – não apenas no súbito otimismo dos últimos dias, resultado natural de tantos recursos despejados. A questão é se o mercado conseguirá acordar do coma após esse lapso de sobrevida. Se os motivos cruciais da crise serão corrigidos, ao contrário da esmola farta como solução paliativa de momento.
Se você tem, eu também quero: assim reagiram outras empresas dos EUA, como as poderosas montadoras Ford, General Motors e Chrysler, que pedem ao governo ajuda de 25 bilhões para reequipar suas fábricas. Quem não quer a sua parte do quinhão?
Não há mais espaço para hipocrisia. O ABC neoliberal está sendo jogado no lixo e o capitalismo recorre ao Estado para respirar. O livre-mercado, afinal, é uma balela ideológica tão flagrante que não poderia resistir muito tempo. O consenso entre os especialistas é simples. A única saída é a volta de um Estado forte e atuante, regulador rígido e cobrando extrema transparência das empresas – Keynes, bem lembrado, sorri.
É no mínimo curioso (para não dizer suculento) observar George W. Bush e John Lipsky, vice-diretor do FMI, admitirem que a intervenção é a única saída para evitar uma recessão mundial catastrófica – como se isto já não estivesse ocorrendo.
Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia em 2001, reconhece o óbvio: “A crise financeira que atingiu Wall Street e os mercados financeiros de todo o mundo equivale, para o fundamentalismo de mercado, ao que foi a queda do Muro de Berlim para o comunismo. Ela diz ao mundo que esse modelo não funciona. Esse momento assinala que as declarações do mercado financeiro em defesa da liberalização eram falsas”. Onde está Fukuyama agora?
O Brasil, pasmem, está melhor preparado do que nunca para minimizar os abalos. A ironia é que, ao contrário do que quer boa parte da imprensa, o governo do “comunista doidão aliado das FARC” Luís Inácio Lula da Silva conseguiu ter melhor atuação econômica que seus antecessores, entregando um país muito mais sólido, independente e forte do que jamais fora.
Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, que o diga. Admirado mundialmente, é agora tido como exemplo pelos países “desenvolvidos”. Mas que o leitor não se engane nem se contente com pouco: as contradições e erros do governo atual são temas merecedores de uma outra discussão específica.
Difícil mensurar a extensão da crise. Do que será de nós, pobres moradores do terceiro mundo, que, afinal, em sua maioria, acham tudo isso muito chato. Todos devem estar gastando como se nada estivesse acontecendo. A burrice endêmica da nossa elite é ancorada pela desigualdade abissal na qual se sustentam. Tudo acontece na hora certa, diria a sabedoria popular. Entre o que seria o fim do sonho (ou do pesadelo), você escolhe.
Mais do que números e prejuízos, a fissura principal ocorre na essência da ideologia capitalista. O quadro atual permite poucos malabarismos teóricos para que “pensadores” barrigudos e bem asseados defendam o indefensável. Your time will come.
Na verdade, ninguém tem que esperar. Estamos na tempestade depois da bonança. Com a diferença de que a bonança foi para poucos, e o caos, agora, não vê conta bancária ou status social.
Esta é a minha pequena contribuição. Os meus 100 ml de gasolina no big-bang. Guarde o seu dinheiro para as crianças. Elas vão precisar.
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Breaking News: Hoje, 29.09.08, ao contrário do que era esperado, a câmara estadunidense rejeitou o pacote de ajuda de U$$ 700 bilhões. Justificativa? Republicanos consideram a ação “socialista” demais para ser aceita. Como resultado, a Dow Jones recuou 777 pontos (ou 6,98%), configurando a maior queda da história da bolsa. A Nasdaq caiu 9,14%. Na Europa, o governo inglês estatizou o banco Bradford & Bingley, após já ter feito o mesmo com o Northen Rock, gerando mais turbulência no mercado local. A desaprovação do pacote foi recebida com desespero pelo presidente Bush e demais membros do governo. O projeto precisará ser reformulado e passar por uma nova votação, até que se chegue a um acordo. Aguarde os próximos capítulos.
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Nota: Referências e artigos recomendados podem ser encontrados aqui. Foram consultadas também as edições de 24 de Setembro de 2008 das revistas Exame e Carta Capital, matérias de capa: “Pânicos, Prejuízos e Descontrole em Wall Street” e “O Novo Socialismo”.