O momento é propício: eleição nos Estados Unidos, eleição no Brasil. Candidatos tentando provar a todo custo que são uma boa referência, “boas” pessoas, preparados, responsáveis e confiáveis. Como diz o povo: quem não te conhece que te compre.
Mas um aspecto, dentre vários, chama a atenção. E não é de hoje. Aliás, talvez este seja um dos mais antigos artifícios políticos: o uso da família como plataforma de campanha. Dentre o jogo eleitoral, sempre foi vital provar para o público que o candidato possui “valores familiares sólidos”, têm uma esposa/marido em um relacionamento feliz e de preferência muitos filhos.
Por que será que se preocupam tanto com isso?
Elemento crucial da nossa sociedade, a família nuclear burguesa é ícone de “sucesso” e “retidão”, considerada praticamente um atestado de bom ser humano, integridade, respeito e confiança. O candidato que não é casado, não tem uma família unida e feliz, algo deve ter de errado com ele. Por algum motivo nefasto (e preocupante) deve ter escolhido não se comprometer. Provavelmente é um homem (ou mulher) sem escrúpulos que não hesita em fazer qualquer coisa para atingir seus interesses. Talvez até alcoólatra, drogado, criminoso, vai saber. Tire as crianças da sala. Fechem as cortinas. Desliguem a televisão. Ninguém que não possua uma família tradicional é digno de ocupar um cargo público.
Assim parece pensar 95% dos eleitores e candidatos. Os últimos, claro, apenas jogam o jogo. E pode colocar no pacote também a religião. Todos os pensamentos acima podem ser dirigidos também a qualquer candidato que não seja cristão. Demonstrar ser alguém temente a Deus é fundamental para as chances de sucesso. Família, política e religião são três aspectos intimamente ligados no Brasil, determinantes da nossa cultura e formação social, conceitos chave para entendermos o porquê sermos o que somos.
É compreensível que se esperem estas coisas dos candidatos. Quanto mais ele se aproximar do eleitor, melhor. Quanto mais aquele que está em casa se identificar com o político, mais chances de depositar seu voto nele. Melhor ainda se ele for “da sua região” – e prometer algum benefício direto pra ela.
Seja aqui ou nos Estados Unidos, o estereótipo do político cristão e de família feliz é uma regra. Quem concorre esforça-se ao máximo para demonstrar o profundo grau de comprometimento com todos os valores esperados de quem vive sob tais “preceitos” e “condições”. Mas, para a nossa realidade tupiniquim, há um agravante: a política vertical, patronal e paroquial que possuímos. Como vertical entenda uma mentalidade e prática política construída de cima para baixo, imposta, sem participação efetiva das camadas populares, a exemplo do caso alemão. Patronal refere-se ao caráter assistencialista e protetor do Estado e dos políticos eleitos: o povo sempre recorre a eles pedindo algo – na face mais podre da situação – querendo algo em troca, esperando uma recompensa, uma ajuda, um afago, uma atenção. É no “paizinho” que está no poder que o povo espera a sua redenção, seu conforto e melhora na qualidade de vida. Neste sentido, Lula é o exemplo máximo que já tivemos, a personificação do “grande pai salvador”, já encarnado por Getúlio Vargas e JK.
E paroquial entrega não somente a relação promíscua entre política e religião – duas coisas que não deveriam se misturar nunca – como também a diminuta mentalidade regional, de bairro, buscando o tempo todo atender as exigências do seu grupo político, “sua” região, o seu partido, manter os benefícios da oligarquia a qual se insere, sem uma atuação lúcida e um plano de governo amplo, a longo prazo e nacional.
Ninguém escapa. Vereadores, secretários, prefeitos, deputados estaduais e federais, senadores, ministros e o presidente. Todos atuam e se movem sob a sombra das características aqui descritas.
Sobre o uso eleitoreiro que se faz da questão familiar, basta pensarmos rapidamente na hipocrisia, na situação forçada e das relações “para inglês ver” que os políticos alimentam para pleitear um cargo. Manter a tradição, por mais destruída, patética, ultrapassada, mentirosa e falida que ela esteja, é fundamental. Por mais que a configuração das famílias tenha mudado drasticamente nos últimos anos, e a própria sociedade se alterado profundamente, o resquício das convenções clássicas e estereótipos engessados é brutal.
Não importa o que você é, mas o que as pessoas acham que você seja. Deve ter alguns milênios que a filosofia propôs (ou entregou) isto. Tudo mundo sabe como funciona e a ordem estará mantida até que as aparências permaneçam como estão.
A junção de vida privada e vida pública foi o câncer central que começou a destruir com a política e nossa chance de sobreviver enquanto sociedade. Antes, a vida privada era o mundo particular de cada individuo. Palco onde ele podia realizar o que bem entendesse, não interessando a comunidade suas idiossincrasias, preferências e práticas sociais. A relação com a família era de responsabilidade de cada um e nada devia a política interferir, ou se misturar nisto. Na verdade, era apenas na pólis, na vida pública, que o homem se realizava, que podia agir diretamente no mundo, na sua sociedade, só ali que ele era, enfim, livre, tinha voz. Esta era a herança grega destruída pelo Império Romano, colocando o homem como membro de um único meio, sem distinção – e com todos os problemas advindo dessa mudança de paradigma. Um pouco de história e de Hannah Arendt ajudarão a elucidar o aqui descrito.
Basta ilustrar que, não interessando o que o homem fizesse em sua vida privada, o importante é que soubesse contribuir em sua existência pública, o único momento onde ele interferia diretamente na sociedade. A mistura das duas coisas acarreta desperdício de tempo, energia, discussões infrutíferas e que nada interferem na vida de todos. É essa praga romana que contaminou toda a modernidade, piorado, óbvio, pelo mau uso do conceito, transformando a política e tudo o mais num mero espetáculo, tão superficial e inócuo quanto possível. Mudam os autores, permanece o enredo.
É onde estamos atolados. Na junção dessa política confusa, espetacularizada e prostituída. Piorada por valores religiosos, familiares e patronais. Por uma mentalidade – ironia – imensuravelmente pequena.
Pois, quando tiver que sair da sua casa para ir votar (na nossa democracia de voto obrigatório, uma piada estrutural), pense um pouco sobre isso. Ninguém zela por ninguém e “livre concorrência” não passa de uma mentira histórica muito mal contada. Na política da Cosa Nostra, cada um tem a vida que faz por merecer.