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Sem João Gilberto, ficamos mais frágeis ante a barbárie

Muito se diz sobre o fim do “projeto” de país que a morte de João Gilberto representa. Não acredito nisso. Acredito que o grande projeto de João Gilberto era não se curvar à barbárie. Barbárie estética, lírica, musical, poética, política, cultural, humana.

Apostar na delicadeza é, não raro, um esforço arriscado e mal recompensado. Crer que a sutileza possa desmontar a nossa desgraça cotidiana, ainda que por breves minutos, é um empreendimento e tanto. Nesta seara, João Gilberto é imbatível.

Para falar de outro baiano, e de um baiano precursor e que me é muito caro, não existe em João Gilberto a aspereza, o drama e a pungência de um Dorival Caymmi. Se João inspirou toda uma “nova” música brasileira, do tropicalismo a Paulinho da Viola, se fez, novamente, a ponte entre a Bahia e o Rio de Janeiro, se transformou nossa grandiloquência em minimalismo, Caymmi, ao seu modo, é o monumento que tornou isso possível.

Mas falemos do samba chamado de Bossa Nova porque ninguém sabia como classificar aquela batida peculiar, burilada, ironia, em Diamantina (MG). A história e a música de João Gilberto são um lembrete do melhor que o Brasil é, produz e pode ser.

Mais que simbolizar o fim da utopia dos “anos dourados” da Era JK, a morte de João Gilberto nos deixa mais expostos à barbárie. Barbárie essa que é o projeto primeiro e último de Jair Bolsonaro e sua turma. Aos 88 anos, João viveu muito e bem.

E nos deixa quando esse país enfrenta as forças mais fascistas, obscurantistas, ignóbeis, sádicas, francamente estúpidas e anti-civilização, anti-iluminismo, ante-cultura, ante um projeto mínimo de nação aceitável, que só sabe entregar a barbárie pura e simples porque foi para isso que foi eleita e porque é o máximo que conseguem entregar. Não há nada o que esperar de um parasita miliciano, de um homúnculo insignificante como Jair Bolsonaro, além de que ele seja bárbaro, ignorante e fascista como é.

Se o simbolismo do momento atual é inevitável, João Gilberto é muito mais do que esse Brasil merece. Sempre generoso, ao seu modo, destaco essas palavras na entrevista que deu para O Globo em 1981, quando retornava ao país depois de um longo período vivendo nos Estados Unidos:

“Nossa música é imortal, inconfundível, inimitável, insubstituível. Mesmo que se compre horários nas rádios (como se faz). No final, o Brasil vence. Meu trabalho foi sempre com a música brasileira. Com o samba, nossa música infinita. Aquilo que as pessoas chamam de Bossa Nova e que eu chamo de samba, de música brasileira — ampla, rica, infinita, sobre a qual o artista pode criar o seu fraseado pessoal. Fazer essa música lá fora é fácil: eles nos respeitam. Vêm e vão gerações, e o amor e a admiração aumentam pela nossa música. Muito mais do que aqui, no Brasil. Esta é a verdade: o respeito maior é deles e não nosso”.

A entrevista é exemplar em desmitificar bobagens e estereótipos sobre João, sobre o que ele pensa sobre o próprio trabalho, a exigência necessária, o Brasil e o estrangeiro, a abertura política, enfim. Diz ele:

“Aliás, fico muito triste quando inventam histórias assim a meu respeito. Como aquela de que sou uma pessoa impossível de se trabalhar, um temperamental perfeccionista — um “chato”. A verdade é que gosto multo do meu trabalho. É a minha opção de vida, minha aproximação pessoal da felicidade. Interessa-me fazer sempre o melhor trabalho, dividir o melhor possível os acordes, a emissão conjunta e uníssona da voz e do violão. Essa preocupação, que uns chamam de exagero e preciosismo pedante, nada mais é do que amor pelo que faço. A certeza de que não sou perfeito ou um gênio, de não ter essa voz privilegiada que outros dizem — e de que é necessário trabalhar a sério e duro pelo produto final, este sim, perfeito: a música brasileira. Toco e canto “de “ouvido”’ e só trabalho com grandes músicos e arranjadores. Tudo sempre deu muito certo. O amor sempre aconteceu em meu trabalho. O mais é folclore, mesmo”.

Estamos diante de um gênio inapelável que tinha plena consciência de suas fissuras. João Gilberto para ser João Gilberto precisava ser esse perfeccionista. Coisa de quem respeita tanto o que faz e ama tanto a música brasileira que, bem, encontra par em pouquíssimos, raros.

A obsessão com o tempo certo, a concisão e precisão da palavra lembra também Graciliano Ramos, nosso escritor maior, que me desculpe Machado. A maneira como João fala do seu estilo é em tudo semelhante à notória obsessão de Graciliano com a palavra, famosa na metáfora das lavadeiras de Alagoas. Pois diz João:

“Apenas procuro cantar sem prejudicar o sentido poético e musical das composições. É assim como tirar os excessos, seguir o curso natural das coisas, dar as notas de um jeito tal que não prejudique o sentido da poesia, frisar aquelas palavras que têm a força poética. Procuro que a voz saia idêntica à nota musical, brandamente, com naturalidade, sem esforço artificial”.

Diz Graciliano:

“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes.

Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota.

Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”

Para Nuno Ramos, citado por Paulo da Costa e Silva neste artigo na Piauí, “o canto de João Gilberto não é o canto do intérprete, mas o do Autor (Luiz Tatit chama João Gilberto de re-Autor). Ele não interpreta, compõe – está compondo de novo, agora à nossa frente, e em loop. Ao menos para quem usa o instrumento, a separação entre melodia a harmonia não é própria exatamente do ato de compor? Não é necessário, para compor, discrepá-las um tanto, adiando a convergência? É esse ato que sua interpretação visita, abrindo novamente a canção, tornando fluido o que parecei ter se fixado”. Trata-se de abrir o acesso “a esse núcleo onde o ato criador retorna”.

Perder João Gilberto em 2019 é perder aquilo que o Brasil tem de melhor. E para um artesão da palavra que nos jogou de encontro a tal “modernidade”, que fez a música brasileira gigante lá fora, a despeito dos seus antecessores, também importantes.

Perder João Gilberto é perder alguém capaz de compor algo como “Undiú”, quando a palavra mínima encontra o violão inimitável ao lado de Jorge Amado. A transformação da música em adoração. Em transcendência. Perder João Gilberto é perder a beleza dos dias comuns. É ficar órfão do que nos faz humanos. Significa mais dias nublados na praia e mais comida sem tempero no prato. Insubstituível e inimitável, éramos muito – muito – melhores com João. E a verdade é que tudo será ladeira abaixo a partir de agora. Mas, como ele mesmo diz, confiante, apaixonado e utópico, o Brasil sempre vence no final. Oxalá.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Especiais