Seis brasileiros – todos homens brancos – concentram a mesma riqueza que a metade mais pobre da população, mais de 100 milhões de pessoas. E os 5% mais ricos do país recebem por mês o mesmo que os demais 95% juntos.
As mulheres brasileiras só terão igualdade salarial com os homens em 2047 e as pessoas negras só ganharão o mesmo que as brancas em 2089, no caso de se manter a tendência dos últimos 20 anos.
0,9% do total de proprietários são donos de 45% de toda a área rural do país.
Esta é apenas parte da história. Dizer que “o Brasil está polarizado” é uma muleta muito eficaz quando se ignora a formação estrutural da nossa sociedade desde…sempre. A “polarização” está na base desse país que passou mais de 300 anos explorando a escravidão negreira, que recebeu mais escravos do que qualquer outro e foi o último país do mundo a “abolir” a escravidão e só o fez para impedir a reforma agrária e botar em prática uma farsa bem montada.
A “polarização” é a essência de um país que dizimou, seguiu dizimando e ainda dizima os povos indígenas que habitam essa terra por todos os meios imagináveis: por doenças, assassinatos, perseguições, expulsões, ameaças, confinamento e até com venenos e explosivos jogados de helicópteros durante a ditadura.
A tese da “polarização” cresceu bastante durante as eleições de 2014, quando Aécio Neves era o representante da direita limpinha que iria livrar o país da corrupção e viveu seu auge eleitoral em 2018, com o fascismo oportunista de Bolsonaro a causar episódios de violência país afora contra quem usasse simplesmente uma peça de roupa vermelha.
Quem costuma atacar o suposto “nós contra eles” que “o PT jogou o país” – legítimo contrassenso em um governo de coalizão – é justamente aqueles que usam o tempo todo do “nós contra eles” seja como ameaça pura e simples, seja atuando para censurar e “dizimar o adversário”.
É uma das teses que “Democracia em Vertigem” abraça de modo inevitável e também equivocado e insuficiente. O documentário de Petra Costa virou hit instantâneo basicamente por ser lançado via Netflix, que tem cerca de 10 milhões de usuários no Brasil e 139 milhões no mundo. Isto, obviamente, é muito mais do que qualquer documentário alcançaria via o circuito tradicional. Basta lembrar que “O Processo”, de Maria Ramos, não teve 1/10 do alcance.
O doc também se beneficia pelo timing: os vazamentos publicados pelo Intercept que comprovam os crimes cometidos (vamos chamá-los pelo o que eles são) por Sergio Moro no julgamento de Lula e pela força-tarefa da Lava Jato esquentam ainda mais o interesse. Mas nem precisaria.
O que não faltou no Brasil nos últimos anos foram episódios escancarados de golpismo e “tensão” política. Vejamos: os protestos de 2013 e suas consequências para todos os lados, incluindo a lei que estabeleceu a delação premiada; a intervenção ilegal de um juiz de primeira instância vazando uma ligação da presidenta da República para interferir diretamente na nomeação de Lula ministro; o espetáculo grotesco da votação do impeachment – quando centenas de corruptos seriais liderados por um gangster como Eduardo Cunha sacramentaram um golpe parlamentar contra Dilma Rousseff; o governo Temer, sua agenda ultraliberal e (de novo) os vazamentos de áudios que, bem, não deram em nada porque os mesmos parlamentares arautos da moralidade foram comprados para manter o PMDB-PSDB no poder; Lula preso em um processo que, os vazamentos não deixam dúvida, a acusação não tinha nem provas nem convicção, mas tinha a missão recebida por eles e por Moro; a vitória eleitoral de um parasita do baixo clero que passou 30 anos na insignificância, elevado a candidato viável pela plutocracia enfurecida por perder 4 eleições seguidas para o PT, os militares, a mídia, os ruralistas, o judiciário, enfim, o conluio de sempre que embarcou no fascismo descarado porque cansou de brincar de democracia.
Visão privilegiada desperdiçada em clichês de roteiro e direção
Tudo isso (e bem mais) são ingredientes fartos para qualquer documentário que se preze. Mas Petra Costa e os demais roteiristas conseguem entregar no máximo uma retrospectiva por quem teve acesso privilegiado aos atores dessa história. E tudo temperado com uma redação brega de gosto duvidoso – “imagine um país que ganhou o seu nome de uma árvore”, “um escultor cujo material é a argila humana”, etc.
Também não ajuda a narração arrastada e melancólica e a história de vida da própria família da diretora, neta de Sérgio Andrade, um dos fundadores da Andrade Gutierrez, uma das construtoras que financiaram o PT e todos os partidos políticos nos últimos anos.
Sejamos justos: Petra não esconde as suas origens e fala diretamente sobre o fato da família financiar políticos no Brasil no mínimo desde JK (e a cena das placas ilustra isso), dividida entre a militância dos pais contra a ditadura nos anos 70 e o dinheiro farto do avô.
Esses “paradoxos” mostram bem outro fato: a burguesia nacional nunca teve o que reclamar dos governos do PT. Pelo contrário. Quando confrontado com o fato de que os bancos bateram recordes seguidos de lucro no seu governo, Lula costuma abraçar sem pudor a tese de ser “um pai para os pobres e uma mãe para os ricos” (devidamente explorada por “Tio Rei” e cia), o que resvala no getulismo oportunista e na prática “conciliadora”, o tal “governo de coalizão” que o PT se chafurdou para governar.
O problema com o PT nunca foi econômico, mas de classe. Esse bando de esquerdistas liderados por um operário nordestino nunca fez parte de fato do clube, mas foi aceito nele por conveniência de ambos os lados.
O PT achou que conseguiria jogar o jogo e sair ileso, a elite fingiu que aceitava o mínimo de inclusão social no limite do contrato estabelecido de que os seus privilégios permaneceriam intocados, de que lucrariam mais ainda do que sempre lucraram e de que os “avanços sociais” poderiam ser revertidos rapidamente quando assim quisessem. Temer e Bolsonaro estão aí para não me deixar mentir.
Obviamente laudatório ao PT, o documentário não se exime de críticas, seja de Gilberto Carvalho ou mesmo na “autocrítica” de Lula e Dilma, nas inserções comedidas da diretora mostrando como o partido usou e abusou de tudo que sempre condenara. Aqui, um parêntese. Cobra-se muito “autocrítica do PT”, mas desconfio de que isso vem não só da direita cretina como de quem nunca se deu ao trabalho de acompanhar realmente as figuras do partido.
As recentes entrevistas de Lula (Folha de SP, El País Intercept, TVT, etc) estão atoladas em autocrítica. A recém-lançada autobiografia de José Dirceu, ainda mais. Dirceu é francamente brutal com o PT (e consigo mesmo) em diversos momentos, inclusive sobre a fatídica “Carta aos brasileiros”, símbolo da capitulação eleitoral de Lula para as elites. Confirmada depois pelo seu governo.
Mas isso não muda o fato de que o PT foi covarde, omisso e incapaz de efetivamente produzir mudanças estruturais inadiáveis e extremamente necessárias para o país. Isso não muda o fato de que Lula, com quase 90% de aprovação, preferiu se aliar ao Centrão e ao PMDB mais corrupto para manter tudo como está.
Perdeu a oportunidade de encarar as reformas política, tributária e fiscal, a regulação da mídia e a revisão de concessões indevidas na mão de oligarquias, o julgamento de crimes da ditadura (como fizeram todos os países da América Latina), abdicou de uma reforma agrária profunda, foi responsável por sancionar uma Lei de Drogas que agravou drasticamente o encarceramento em massa de jovens pretos e pobres e por aí afora. Uma oportunidade na mão de um presidente operário com capital político e 90% de aprovação que possivelmente não se repetirá tão cedo, talvez nunca.
Lula optou por soluções imediatas, mas paliativas e passíveis de revisão instantânea, caso do Bolsa Família, do Pro Uni, do Minha Casa, Minha Vida, etc. No caso dos dois últimos, mais um paradoxo: ao mesmo tempo que incluía milhões de estudantes pobres pela primeira vez na universidade e dava acesso a casa própria para milhões de famílias, enriquecia exponencialmente empresários com práticas nada confiáveis.
Caso da MRV Engenharia de Rubens Menin, flagrado explorando trabalho escravo e que agora é dono da CNN Brasil em “parceria” com o ex-capacho de Edir Macedo na Record. No mais, a realidade atual mostra que os vários programas do PT, efetivos e necessários, não sobrevivem ao fascismo ultraliberal da direita xucra.
Perto do que o Brasil precisa, o PT nem arranhou a superfície do “sistema”. O mesmo “sistema” que apoiou em peso a candidatura Bolsonaro que se vende, risos, como “antissistema”. É o tipo de excrescência inimaginável que só é possível em um país como o Brasil. Uma ofensa à inteligência de qualquer ser humano alfabetizado.
Uma retórica nojenta apoiada em disparos em massa de notícias falsas, candidatos laranjas, ausência de debates e outros meios ilícitos que fraudaram as eleições de 2018 com a conivência do judiciário, do TSE, o Supremo, grande parte da mídia, enfim, a elite já citada aqui que sabe muito bem o que quer, quais interesses defendem e como garanti-los.
“A pior maneira de evitar uma colisão é fingir que ela não ocorre”
Em excelente coluna publicada em 28 de setembro de 2018, Vladimir Safatle afirma:
Um dos piores erros em política é acreditar que o tempo histórico é uma linha reta.
Quem entende o tempo como linha reta acredita que fatos ocorridos ficam no passado, que as lutas de outrora dizem respeito a configurações de outrora e que cada momento exige uma análise radicalmente específica, como se estivéssemos a lidar sempre com o que não é fruto de retornos e repetições.
Isso pode se passar por precisão analítica, mas é apenas pobreza intelectual.
O tempo histórico é uma pulsação contínua de contrações, sua espessura é própria de uma matéria de múltiplas camadas na qual cada uma dessas camadas se afunda na outra. Por isso as lutas sociais nunca são feitas em nome apenas daquilo que elas imediatamente afirmam.
Seria bom lembrar disso em um país como o Brasil. O Brasil acredita poder resolver suas lutas esquecendo-as, extorquindo reconciliações, pregando retornos a épocas idílicas de paz que nunca existiram. Por isso, ele é continuamente assombrado pelas piores regressões, pelas violências mais explícitas.
O Brasil sempre – sempre – esteve “polarizado e dividido” e em colisão. E o PT ocupa papel central desse contexto político nos últimos 40 anos. Nenhum documentário poderia exaurir os acontecimentos brasileiros recentes, mesmo que tenha essa pretensão. Para além dos diversos documentários, livros, artigos e análises que já foram produzidos e publicados, isso continuará a reverberar e provocar reflexão e incômodo permanentes.
Mas, diante da realidade e da tradição brasileira em documentários, uma verdadeira escola de mestres que inclui Leon Hirszman (e o trecho usado de “ABC da Greve”, um clássico, dirigido por ele, já é melhor que todo o doc de Petra), Vladimir Carvalho, Eduardo Coutinho, Silvio Tendler, Octávio Bezerra, Jurandyr Noronha, Renato Tapajós e tantos outros, não está bem representado aqui.
No fim, “Democracia em Vertigem” é uma retrospectiva privilegiada dirigida e escrita sob o viés de uma esquerda igualmente privilegiada de berço, que ignora aquilo que é conveniente ignorar. Um bom exercício de recorta e cola com alto orçamento, mas que peca pelos vícios de origem, teóricos, práticos e técnicos – o roteiro, a narração, as imagens aéreas em drones, etc.
O Brasil sempre foi conciliação e golpe. A abolição, um indulto a todos os crimes cometidos por séculos. A República, uma farsa. A “revolução de 30” outro golpe civil-militar. A ditadura do Estado Novo. O golpe de 64 e os 21 anos de ditadura militar que saíram impunes pela anistia “ampla, geral e irrestrita”. A “democracia” de coalização sempre com a tutela militar que foi garantida pela Constituição de 88, um acinte.
Nosso mais frágil contrato social sempre foi rasgado assim que a elite resolve que é hora. Ninguém tem o histórico que o Brasil tem, figurando entre os 10 países mais desiguais do mundo, por acaso.
Mesmo se submetendo a todo o jogo dessa plutocracia, o PT foi limado do poder porque incomodava, sempre incomodou e porque tem na sua fundação a reunião de dezenas de forças de esquerda de matizes e origens diferentes, populares, de resistência, de confronto e também de democracia burguesa.
Quando esse modelo cansa, resta uma eleição fraudada do início ao fim para tirar Lula da disputa e um capitão do baixo clero usado como boi de piranha de quem realmente manda nesse país. Nosso “estado de exceção” – que sempre foi estado de exceção para os povos indígenas, o negro, o pobre – virou fascismo institucional às claras.
A realidade é sempre infinitamente mais brutal e intragável do que mesmo um documentário é capaz de retratar. Ótimo ano a todos.