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Um elogio ao animal pensante

Por Tiago L. Garcia

Se nós entendemos como certo o esgotamento do discurso religioso, nós somos obrigados a enxergar o homem como um animal. Um animal pensante. Um animal doente.

“Doente” devido ao caráter ambivalente do pensamento. Se, por um lado, ele potencializa nossa capacidade de sobrevivência, nos faz capaz de instrumentalizar a natureza em função de nossas necessidades e caprichos, por outro lado, ele gera um “curto-circuito”. E é este “curto-circuito” que nos distingue dos demais animais.

Um animal que questiona? Há algo errado! Se a natureza pudesse nos dar conselhos ela nos encaminharia imediatamente a um analista.

Mas se a natureza nos observa em estado de choque, o inverso é também verdadeiro. Ao nos questionarmos acerca do “sentido da vida” aquilo que nos incomoda profundamente não é a complexidade da questão, mas sim sua estúpida e absurda simplicidade! Os homens e as mulheres existem para a subsistência da espécie. E é isto! Caso fosse de alguma utilidade, poderíamos acusar a natureza de superficialidade ou mesmo de falta de imaginação!

A sobrevivência da espécie, a finalidade que nos entrega (porem, gentilmente, não nos obriga) a natureza é, no mínimo, desapontadora. Aprendendo, assimilando e martelando outras finalidades a vida, que não aquela imposta pela natureza (a subsistências da espécie), é que surge a ética, o ethos humano.

Nós sonhamos (quando não… deliramos), assim, além dos grilhões da natureza.

Mas este texto não é um texto sobre ética (teríamos, certamente, pensamentos sombrios e alegres a compartilhar a este respeito), mas é um elogio à humanidade, ao animal doente!

Sob a perspectiva do homem que perde seu status sagrado e seu lugar na eternidade pode parecer desoladora a fragilidade dos primatas questionadores que somos. Acostumados, ou mesmo afeiçoados, a nossa origem símia, contudo, podemos observar com espanto e sincero orgulho o glorioso e subversivo caos que fazemos com aquilo que a natureza fez de nós.

O amor pode ser decomposto em seu denominador comum, a preservação da espécie, o desejo sexual sendo a ele arreigado. A compreensão disto poderia nos levar a uma visão desoladora: Seriamos marionetes da natureza e não crianças criativas!

Mas observemos com atenção e sob a perspectiva inversa: O desejo sexual se imiscui, tinge, combina-se a outros desejos, a ponto de se tornar algo completamente distinto de seu ponto de partida. Do instinto `as pulsões há um longo caminho. Caminho pavimentado por nossos próprios ímpetos!

E quanto àquilo que a música confere ao sentido da audição! Um sentido de utilidade periférica ao homem natural serve de veículo para algo que podemos denominar, sem a menor ingenuidade, de mágica. Não há nenhuma explicação minimamente plausível e clara acerca da origem dos efeitos que a música rende aos homens e mulheres.

O mesmo vale para culinária e o périplo sensual que ela rende ao sentido do paladar.

Há algo de imensamente interessante a respeito do animal rebelde que somos! Podemos não viver eternamente, sermos ainda mais frágeis que os macacos e talvez nem mesmo exista um Deus que reconheça o quão peculiares e interessantes somos. Contudo não devemos estremecer diante do “silencio dos espaços infinitos”.

Quando a maior de nossas doenças, o pensamento, nos impõe um fardo que nos parece por demais pesado para carregar, devemos nos lembrar de nossos méritos! Arranjar uma garrafa de nossa bebida favorita e abrir nosso livro favorito, em nossa passagem predileta, em honra à humanidade:

O pensamento consola tudo e da’ remédio a tudo. Se algumas vezes ele lhe causa mal, peca-lhe o remédio para o mal que ele lhe causou e ele o dará” (Chamfort. Máximas e Pensamentos. Aforismo 29).

Cultura além do óbvio. Desde 2008.

Published in Grandes Ninharias