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True Detective: é tudo sobre pais e filhos, estúpido!

True Detective chegou, sobretudo, colocando dois atores da mesma geração no lugar que finalmente merecem. Em papéis de destaque e ao mesmo tempo desafiadores, a série é a redenção especialmente de Matthew McConaughey, que passou quase a vida toda estrelando comédias românticas de gosto duvidoso e outras produções no mínimo questionáveis. Com o Oscar embaixo do braço por sua brilhante atuação em Dallas Buyers Club, McConaughey se reinventa completamente, encabeçando uma série que tem tudo para firmar seu nome entre as melhores da história. Woody Harrelson, por sua vez, apesar de participar em projetos melhores que McConaughey, na média, também precisava de algo desse calibre para dar conta da sua capacidade.

Outra duas coisas fundamentais: o nome, que traz já na essência a brincadeira de ser uma paródia, uma homenagem e uma provocação a um estilo de ficção policial barata e, em outra ponta, a incrível concisão e coragem em criar um monumento dessa categoria em apenas 8 episódios, com o mesmo escritor (Nic Pizzolatto, brilhante) e o mesmo diretor (Cary Joji Fukunaga), quando quase todas as séries costumam contar com dezenas de roteiristas e diretores diferentes. Tanto McCounaghey quanto Harrelson não retornarão para a segunda temporada, que contará com outros protagonistas e, naturalmente, outra premissa. É uma quebra de paradigma tremenda na indústria americana, evitando explorar um produto com imenso potencial e sucesso de crítica e público comprovado. Curiosamente, ao encurtar o tempo de vida de uma abordagem em si, a série ganha em longevidade.

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True Detective é o tipo de série que te deixa ávido por descobrir cada detalhe, cada ligação e cada referência. E, claro, a internet é prolífica nisso. Passei os últimos tempos lendo tudo de interessante que encontrava sobre a série, artigos que reuni nessa tag no Delicious. Há tantas camadas, tantas leituras possíveis e tantas pontas em True Detective que, para quem tem a mínima afinidade com filosofia e tramas do gênero, a série é um soco no queixo desde o primeiro minuto.

A postura niilista do detetive Rust Cohle vivido por McConaughey é um deleite. Em seus solilóquios (obg, Marina Lang), Cohle destila uma mistura da filosofia de Nietzsche, Schopenhauer, Cioran e nomes modernos como Thomas Ligotti, Jim Crawford, etc).

Afinal, não é nada comum vermos em qualquer show de TV um personagem afirmar algo como isso:

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“We are creatures that should not exist by natural law. We are things that labor under the illusion of having a self—a secretion of sensory experience and feeling, programmed with total assurance that we are each somebody, when in fact, everybody’s nobody. I think the honorable thing for our species to do is deny our programming, stop reproducing, walk hand-in-hand into extinction—one last midnight, brothers and sisters opting out of a raw deal.”

Ou a descrição precisa e cruel que Cohle faz dos fiéis da igreja montada no meio do mato:  I see a propensity for obesity. Poverty. A yen for fairy tales. Folks puttin’ what few bucks they do have into a little wicker basket being passed around. I think it’s safe to say nobody here’s gonna be splitting the atom, Marty. Nunca é demais lembrar que True Detective se passa no “bible belt” americano e cospe essas coisas na cara do espectador do maior país protestante do mundo.

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Ou, ainda, quando Rust nos surpreende, depois de conseguir arrancar uma confissão, recomendando para a acusada: “a prisão costuma ser muito cruel com pessoas que cometem esse tipo de crime, tente se suicidar na primeira oportunidade que tiver”.

Em suma, a visão de mundo de Cohle é “realista” e “pessimista”, não perdoa as instituições tradicionais, o senso comum e é uma dualidade óbvia com Marty e sua postura cidadãodibem e o modus operandi classe média hipócrita que conhecemos, de defender o status quo daquela comunidade, entre outras coisas. Marty, com justiça, cresce em complexidade ao longo da trama.

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Interessa menos para a série “solucionar” o caso, que se passa num arco de tempo de 17 anos, do que as implicações psicológicas do horror, da violência, da religião, explorar o lado mais soturno da filosofia, do pulso de uma cidade, uma região, as extensões do poder, do álcool, da família, o sexo, a hipocrisia, a corrupção e por aí afora. Interessa mais o “contar uma história” e o aspecto psicológico dos personagens. E é isso que faz de True Detective tão boa: seu roteiro e seu texto acima da média e as atuações excepcionais de Harrelson e McConaughey, que dá o tom exato entre o Rust de 1995 e o que ele é em 2012, dois momentos e “duas pessoas” que guardam muito em comum, apesar das marcas gritantes que McConaughey consegue externar tão bem.

Tecnicamente, como quase sempre em se tratando de HBO, a série é igualmente espetacular. Explorar as paisagens da Louisiana como parte da história e do enredo – algo que as melhores produções sempre conseguem – é um detalhe ante o resto, sempre no ponto, da abertura com a música de T Bone Burnett, que dá o tom da obra até a trilha no geral, que tem 13th Floor Elevators, The Staple Singers, Melvins, Primus, Wu-Tang Clan, Grinderman, Bo Didley, A Tribe Called Quest, The Kinks, Ike & Tina Turner, Townes Van Zandt e Black Rebel Motorcycle Club, entre outros. Lista impressionante e seleção que casa com o enredo.

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Em certa medida, True Detective é Twin Peaks 3.0. Excluindo o aspecto cômico, pouquíssimo presente na trama, a influência da série de David Lynch é facilmente perceptível. Mas o que importa aqui, no fim de tudo e seu satisfatório episódio final (excelente texto sobre o encerramento, aqui), é que True Detective é inteiramente sobre pais e filhos. Sobre relações despedaçadas, doentias, conflituosas, traumáticas, ou simplesmente “normais”, difíceis. Sobre o pecado de pais passados de geração em geração. Sobre o dano que causamos uns aos outros, em suma.

No exercício de rever a série, uma frase de Rust dita no segundo episódio é central para esse mote, dura e verdadeira: “a morte da minha filha me poupou o pecado de ser um pai”. Sabemos que Cohle obviamente nunca se recuperou disso, que acabou destruindo seu casamento e – provavelmente – ditando muito do que ele se tornou. Vemos Marty lutar com o fardo de ser pai, enfrentando os problemas e “desvios” sexuais e com drogas da filha adolescente. Vemos almas perdidas por lares destruídos todo o tempo – prostitutas, policiais, drogados e criminosos citados em delitos que sempre envolvem seus filhos, etc – e, claro, a família Tuttle e Childress. Erroll, “the spaghetti monster”, que mantém o pai morto em sua propriedade. O ciclo infinito de abusos. De crianças desaparecidas. Ou, ainda, o sentido de comunhão que a igreja e a religião representam.

O esboço de redenção de Marty com sua família no leito do hospital. Toda a fala final de Rust, quando o vemos pela primeira vez tão frágil, tão exposto, falando tão abertamente sobre seus sentimentos em relação ao pai e a filha. É um momento de beleza, de certa paz que emerge na escuridão, uma última parábola sobre o ato humano de contar histórias. No fim, é um alívio que True Detective não se preocupe em responder todas as questões que gerou ao longo dos 8 episódios. Seria óbvio demais para ser aceito. Pra mim, nenhum show precisa se ocupar em oferecer respostas para os questionamentos mais diretos.

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True Detective vai muito além disso. E, seja aqui, seja na arte ou no estilo em geral, é o que ela nos oferece além do “mocinho pega bandido”, “o bem vence o mal”, “a luz contra as trevas” – o mais antigo conto de todos os tempos, lembra Rust – que faz com que essa primeira temporada seja o marco dramático que é, ainda que naturalmente irregular em vários momentos.

O fato da série terminar de modo tão sentimental e redentor, num típico “bromance” de reconciliação, claro, revela que Pizzolatto pegou o caminho mais fácil. O interesse dele no tipo de ficção científica que Robert Chambers e H.P. Lovecraft representam é meramente fábula de um mito americano que leva pessoas à loucura. Daí que não é realmente fundamental descobrir quem é o “Rei Amarelo”. Não importa. Pra mim, “The Yellow King” faz parte da alegoria e do mundo fantástico criado por Errol Childress para si mesmo. Além disso, como ambos os detetives dizem: “nós não vamos pegar todos os homens maus, este mundo não funciona assim”.

O cinismo e o niilismo de Cohle, uma das melhores coisas da série, é abalado por uma experiência de quase morte. Algo compreensível, até esperado e que não raro acontece na vida real. Se não chega a subverter os clichês, como prometido – e como poderia? – True Detective entrega algo muito acima da média. Os clichês, afinal, não foram feitos para serem subvertidos. Nem é preciso – e talvez impossível – escapar de todos eles. Existem por uma boa razão. Constituem a essência de um estilo, de uma história. No fim, a série faz ótimo uso de vários deles, de fontes diferentes, com atuações soberbas e direção idem. É muito mais do que normalmente conseguimos. Afinal, não precisamos levar tudo tão a sério. É só um show de TV. Como lembra Cohle…

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Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

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