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Sobre “Narcos”, realismo fantástico e estado de exceção

Por Maurício Angelo

A quantidade enorme de filmes, documentários, séries e quinquilharias baseadas na história de Pablo Escobar mostra o quanto somos fascinados com criminosos e o quanto gostamos de vê-los retratados na tela, algo que o cinema aprendeu desde o primeiro dia de existência. “Narcos”, claro, é a principal aposta da Netflix para a América Latina (só o Brasil apresenta lucro de 500 milhões/ano para a empresa, com 2,5 milhões de assinantes, superando o lucro de Band e Rede TV!). E nada melhor que contar a história do maior criminoso de todos os tempos (o lucro estimado do cartel era de 60 milhões por dia), colombiano, com um diretor e um protagonista brasileiros no elenco, completados pela equipe de várias partes do mundo (Boyd Holbrook, Pedro “Oberyn” Pascal, Maurice Compte, Joanna Christie, Roberto Urbina, etc).

Mas antes das qualidades, cabe falar do principal problema da série: o didatismo exagerado que tem na onipresença da narrativa em off seu sintoma mais evidente. José Padilha gosta do recurso (Tropa de Elite tá aí para mostrar isso) e alguns diretores usam bem (Scorsese, apontado como principal referência aqui, claro). Mas se o voiceover pode ter sua utilidade e seu valor pontual, quando inserido com parcimônia e no momento preciso, também pode atrapalhar bastante o próprio ritmo da narrativa, subestimar a inteligência do espectador, cair em redundâncias de explicação para o que já estamos vendo na tela e estragar o clímax.

E ainda que o seu uso se justifique numa série que tem a pretensão de abarcar 3 décadas de história, intrincadas relações políticas e de poder, dezenas e dezenas de personagens, a ascensão e queda do maior cartel de drogas que o mundo já viu e as inúmeras implicações internas (na Colômbia) e externas disso, “Narcos” usa o recurso exageradamente. Narrado pelo agente Steve Murphy (Holbrook), da DEA (departamento de investigação de drogas do governo americano), o altíssimo volume de off em todos os episódios joga pra baixo a qualidade geral da série, assim como adotar o ponto de vista norte-americano para a narrativa é no mínimo questionável (e a escolha, claro, é comercial).

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Uma vez que você se acostume, no entanto, o que se revela é uma boa temporada. Uma vez que você perdoe essa opção preguiçosa (que demandaria soluções muito mais engenhosas e um texto melhor dos roteiristas), “Narcos” entrega ótima atuação de Wagner Moura, uma direção segura e estilosa de José Padilha (2 episódios), Guillermo Navarro (um dos melhores e mais proeminentes diretores mexicanos), Andi Baíz e Fernado Coimbra e uma cinematografia perfeita (de Mauricio Vidal e Lula Carvalho, velho colaborador de Padilha) explorando as montanhas e a amazônia colombiana, o Caribe, as vielas de Medellín e imagens aéreas dignas do investimento.

A crítica internacional parece ter caído de amores por Wagner Moura, com certa justiça. Discutir o sotaque do ator é bobagem. Dizer que apenas um ator local, tarimbado no sotaque de Antioquia, onde Plabo Escobar nasceu, é típico do preciosismo que atenderia meia dúzia de gente mala em detrimento de um ator do nível de Moura. Sim, o Pablo Escobar de Wagner é quase sempre sereno, pensativo, que fica calado enquanto seus comparsas de crime, subalternos ou mesmo família danam a falar ao seu redor, seja para discutir táticas de guerrilha, distribuição e lucros, seja para atribuições familiares. O Escobar de Moura fala somente o necessário e mantém uma sobriedade raramente atribulada, entregando colocações precisas ou apenas observando, quando é do seu interesse. A química de Moura com os principais associados também é ótima, caso de Luís Guzman, Roberto Urbina e Bruno Bichir.

“Narcos” é essencialmente histórica, quase um documentário. E usa de dezenas de minutos de material jornalístico e de arquivo de conteúdo real para ilustrar a sua versão ficcional daqueles acontecimentos, o que ajuda bastante para o espectador comum, especialmente com o pouco familiarizado com as peculiaridades da América Latina, entender o que se passa aqui. Seja nos discursos de Ronald Reagan, seja nos vários recortes de jornalismo e imagens reais dos personagens envolvidos, serve como um resgate impressionante de uma época tão recente e ao mesmo tempo tão surreal. O mote inicial da série: “há um motivo para o realismo fantástico ter nascido na Colômbia”, veiculada nos primeiros segundos de projeção.

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E realmente há. A despeito das principais características do subgênero literário poderem ser encontradas já nas obras do mexicano Juan Rulfo e nos argentinos Jorge Luís Borges e Júlio Cortázar (além do peruano Manuel Scorza e por aí afora), não há dúvidas de que Gabriel García Márquez, escritor colombiano, é o principal expoente desse estilo que tem em “Cem Anos de Solidão” o seu monumento. E García Márquez, diga-se, lançou em 1995 a obra “Notícia de Um Sequestro”, fruto de seus anos de pesquisa histórica com vítimas das dezenas de sequestros perpetrados pelo narcotráfico no país. Uma peça de jornalismo literário extremamente recomendada para os espectadores de Narcos.

E se “realismo mágico é definido como o que acontece quando uma realidade altamente detalhada é invadida por algo estranho demais para ser crível”, assim parece a história de Escobar. Um homem capaz de fazer o país inteiro de refém, assassinar presidentes, candidatos a, juízes, promotores, ministros, centenas de policiais, diretores de jornal, explodir aviões de passageiros, promover dezenas de atentados a bomba e, ainda assim, negociar com o presidente eleito que ele tentou matar a sua “rendição”, numa prisão de luxo construída por ele próprio e guardada por seus próprios asseclas. Um legítimo estado de exceção tão próximo da nossa história que, sim, é absurdo demais para acreditar. Mas aconteceu. E a queda do cartel de Medellín apenas deixou o território livre para o reinado do cartel de Calí nos anos 90.

Esse estado de exceção é simbolizado pela entrada de Escobar na política, obrigado a renunciar pela reação da oligarquia. O homem que sonhava em ser presidente da Colômbia e era “pai dos pobres”, amados por eles graças ao seu discurso e prática, construindo casas (um bairro inteiro), doando dinheiro, fazendo campos de futebol, comprando o apoio daquela gente. E isto acontecia (e acontece) porque a Colômbia, a exemplo do Brasil, nos faz companhia na lista dos 10 países mais desiguais do mundo. Temos muita (muita mesmo) semelhança com a Colômbia em todos os aspectos e ainda somos irmãos nesse ranking: a abissal desigualdade social abre espaço para lideranças desse tipo, não importa qual seu “ramo de atividade”.

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Com a segunda temporada encaminhada (e o final da primeira já deixa óbvio que a segunda seria produzida), é de se questionar a quantidade de história que contaram em 10 episódios, terminando com a fuga de Escobar de “La Catedral”, deixando pouquíssimo tempo de narrativa para até a sua morte. Considerando que condensaram décadas em 10 capítulos, terão muito pouco para a segunda temporada. Séries como “Pablo Escobar – El Patrón Del Mal”, disponível também no Netflix, por outro lado, exageram absurdamente no estilo novelesco, com 40 episódios. Achar o equilíbrio para o formato é algo que ainda não foi feito.

Entre deslizes e acertos, “Narcos” entrega um ótimo exemplar de produção televisiva moderna e documental.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Destaques TV/Séries/Web