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Dingo Bells: um novo marco do pop brasileiro

Por Maurício Angelo

Não hoje, mas há bastante tempo, existe sempre aquele frisson inevitável: aquela pressa em ouvir logo um disco e emitir opinião o mais rápido possível. Um disco, um filme, um livro, uma série. Na era da histeria em que vivemos (ou, diria Walter Benjamin, “a opinião na era da sua reprodutibilidade técnica”), é difícil fugir dessa tentação, dar um passo atrás ao frenesi. Por isso, resolvi dar tempo para este “Maravilhas da Vida Moderna”, disco de estreia do pessoal do Dingo Bells, de Porto Alegre.

Não que ele seja daquelas obras “herméticas”, de “difícil assimilação” ou que demande demasiado tempo do ouvinte para se acostumar com o que aqui se apresenta. Não. “Maravilhas….” é um disco que desce macio já no primeiro gole. O som é aveludado, redondo, bem produzido, as melodias são gostosas, assoviáveis, te conquistam de cara. A primeira impressão foi boa. E, com o tempo, ele assentou bem na memória. Cresceu o fator replay. Tive mais clareza do seu lugar na história, nesses tempos bicudos de 2015 em que nos encontramos. Com isso, sinto-me seguro para afirmar que “Maravilhas da Vida Moderna” é um marco do pop brasileiro. Poucas vezes – repito, poucas – uma banda conseguiu captar em álbum (ainda mais numa estreia) o pulso da sua geração, o espírito da sua época, chegando com uma maturidade impressionante para quem é novo na cena.

httpv://www.youtube.com/watch?v=C5JQgaP9mV4

É pop radiofônico e descarado da melhor qualidade. Por mais que as influências sejam perceptíveis (e são muitas), Rodrigo Fischmann (voz, bateria e percussão), Diogo Brochmann (Voz, guitarra e teclados) e Felipe Kautz (voz, baixo) colocam um bom tempero próprio aqui. Assim, seja de nomes que vem a mente do power pop/indie rock gringo – de Big Star a Grandaddy, de Replacements a Stereolab, de Teenage Fanclub a Super Furry Animals – é mais interessante ainda o que eles trazem de Clube da Esquina e do progressivo brasileiro (Mutantes, Moto Perpétuo, Casa das Máquinas, Recordando o Vale das Maçãs, Ave Sangria, O Terço).

“Eu Vim Passear”, “Mistério dos 30” e “Fugiu do Dia”, a trinca de abertura, apresenta a carta de intenções e não poderia ser melhor: você tem riffs inteligentes, a cozinha de baixo e bateria em perfeita harmonia (méritos da produção de Marcelo Fruet, que deixa tudo orgânico, quente, com as músicas no tempo e no fôlego que precisam), os vocais dos três em equilíbrio, músicas que brincam com o crescendo e o fade out de uma mesma estrutura para explorar esse mundo etéreo, cínico e ao mesmo tempo simpático, esse pop falsete que pouca gente consegue fazer bem sem parecer ridículo.

E taí uma coisa que o Dingo Bells não tem: medo do ridículo, do patético, do erro. Do nome da banda ao conceito do álbum (o projeto gráfico e a embalagem são um destaque à parte), eles fazem jus a essa geração: “não espero acabar tão sério / tudo certo, sem nenhum mistério, ainda / tempo e tédio ocupando um prédio de vidro” cantam em “Mistério dos 30”. Outro destaque é “Dinossauros”, pela música e letra, que tem na frase “é, talvez a sua imaginação esteja tão limitada por problemas reais” o seu eixo. Somos, sim, uma geração tomada por um cinismo bem específico, com conflitos próprios e angústias diferentes, no meio termo entre o mimo e a coça, o sair de casa cedo e o ficar até mais tarde, o “descobrir o mundo” e os pés no chão, o emprego garantido ou o risco de tentar algo diferente. Mais do que nunca, “tudo que é sólido se desmanchar no ar”, e a gente não tem a mínima ideia do que fazer. O tempo passa e tateamos no escuro, vagamos a esmo. Vamos, sem saber pra onde. E talvez pela primeira vez as pessoas estejam se acostumando com isso. “Olhos Fechados pro Azar”, diga-se, ‘divide’ o disco de forma brilhante.

httpv://www.youtube.com/watch?v=lZ-kkTL7gwo

Teclados, piano, percussão, trompete, trombone, clarinete e saxofone são instrumentos presentes em alguma das faixas, enriquecendo (e muito) a base do trio. Ainda que guarde alguma semelhança com artistas contemporâneos (Apanhador Só, Bidê ou Balde, Marcelo Jeneci, SILVA, etc) ao mesmo tempo o Dingo Bells consegue se diferenciar de todos estes, sem fazer juízo de valor de cada um com sua estética e sua abordagem, ressalto. O “lado B” não é do mesmo nível do “lado A” (se é que essa divisão ainda procede), mas mesmo assim “Bahia”, “Funcionário do Mês” e “Anéis de Saturno”, todas tem seus (grandes) momentos.

Tivéssemos uma cena alternativa razoavelmente presente nos grandes meios de comunicação (ainda que isso esteja melhorando), ou, muito mais do que isso, tivéssemos de fato um meio termo entre o mainstream e a indepedência completa, uma cena sustentável, que não só tocasse pro seu público de nicho e fosse falada na mídia especializada mas também conquistasse uma penetração considerável fora desse circuito, o Dingo Bells estaria arrebentando nas rádios nesse momento. Quem, por algum motivo, acredita que temos esse meio termo, sou obrigado a discordar. O que temos são vislumbres, sopros, situações específicas e momentâneas que desaparecem o mais rápido possível.

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Não existe nenhum motivo para que um pop tão bem feito, com um gancho radiofônico tão evidente, uma música autoral de qualidade tão alta como esta não alcance o “grande público”, exceto os problemas crônicos da indústria musical brasileira e da cena em geral, já comentada exaustivamente aqui mesmo na Movin’ Up e por tantos colegas do meio. O público estaria mais interessado em programas de qualidade extremamente duvidosa que revela pastiches deprimentes como Malta, Scalene e Jamz ou apenas dá atenção porque é isso que apresentam a ele?

A despeito disto, “Maravilhas da Vida Moderna” é uma belíssima estreia de um grupo que tem tudo para, a cada dia, chegar a mais e mais pessoas.

Baixe gratuitamente no site oficial.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Destaques Reviews de Cds