Em passagem recente por Belo Horizonte, consegui pegar a semana de comemoração dos 20 anos d’A Obra, casa de shows/inferninho icônico da cidade, responsável por muitas – muitas noites – de música, encontros, bebedeira e o diabo. A semana contou com o Festival Tremor, organizado pela Quente, que teve a presença de bandas como o Hurtmold, celebrando seu ótimo disco de 2016 com Paulo Santos (falamos sobre o disco e essa parceria já antiga aqui), a ótima surpresa do Junkie Dogs, uma espécie de post-punk/alternativo encontra o metal quase doom da virada dos 80 para os 90 (Smashing Pumpkins meets Trouble meets The Mission, Bauhaus, Cathedral, St. Vitus, Love & Rockets e por aí afora), o Transmissor, Folsoms, Dead Pixels e a festa do Dia da Música, no sábado, com Young Lights, Deaf Kids e Oceania (ex-Udora e Diesel). No sábado, acabei pegando parte do (bom) show do gorduratrans (que está com disco novo na praça) na Autêntica.
Dias de bons shows, boas cervejas e daquela congregação da cena de Belo Horizonte, essa coisa plural, viva, amorfa, que se divide e espalha em muito mais estilos e bandas do que alguns querem delimitar, tendo muito alternativo, pop, metal, rap, forró, instrumental, soul, experimental, punk e por aí afora. “A cena de Belo Horizonte” é essa coisa que, especialmente nos últimos 10 anos, pude participar direta ou indiretamente e que dezenas de amigos e conhecidos ajudaram, de fato, a construir, a diversificar, a abrir espaços no peito e na raça, a fazer com que a cidade, hoje, tenha certamente uma das cenas musicais mais interessantes do país com uma quantidade bastante razoável de espaços para shows de tamanhos, propostas e possibilidades mil (algo que talvez quem está no centro da coisa talvez não perceba com muita clareza).
É preciso ter orgulho, só porque é difícil. É preciso construir pontes na base do erro e do acerto, da convicção, da ambição, às vezes até da ingenuidade. É preciso dinamitar caminhos que “não funcionaram” e aproveitar o que cada estilhaço pode te oferecer. Trata-se de gente de diferentes gerações, com diferentes formações, recursos, experiências, tocando, produzindo, escrevendo, registrando, tecendo planos mirabolantes e outros nem tanto assim. Belo Horizonte tomou posse do que é seu, ocupou mais e mais o espaço público, com seus exageros e sua volúpia (o carnaval da cidade está aí para servir de exemplo), foi para baixo do viaduto, ocupou os parques, fez da repressão, da miopia e da gestão tacanha de um prefeito desastroso (os 8 anos de Márcio Lacerda) palco não sei se do renascimento, mas certamente de uma relação diferente com a cidade, do surgimento de muitas – muitas – coisas quase impensáveis antes.
A Obra é um símbolo. Que casa de shows, que “bar dançante”, que inferninho, no mundo (não só no Brasil) consegue ficar aberto durante 20 anos? Que casa noturna se dá a esse luxo, esse despeito, essa guerrilha? Poucas, raras. E que cidade brasileira tem uma casa de shows dedicada exclusivamente a artistas autorais como A Autêntica? Coisadimaluco, certamente, que não por acaso encontra dificuldades para se manter em pé. Mas não nos deixemos enganar: tudo que a Autêntica já fez até aqui é relevante por si só. Fracassa de novo, fracassa melhor.
Para uma classe e uma era que “não pode sobreviver sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e com eles as relações de produção, e com eles todas as relações sociais”, até que vamos bem, obrigado. Se “precisamos começar do ponto onde estamos: psiquicamente nus, despidos de qualquer halo religioso, estético ou moral, e de véus sentimentais, devolvidos à nossa vontade e energia individuais, forçados a explorar aos demais e a nós mesmos para sobreviver; e mesmo assim, a despeito de tudo, reunidos pelas mesmas forças que nos separam, vagamente cônscios de tudo o que poderemos realizar juntos, prontos a nos distendermos na direção de novas possibilidades humanas, a desenvolver identidades e fronteiras comuns que podem ajudar-nos a manter-nos juntos, enquanto o selvagem ar moderno explode em calor e frio através de todos nós”, não é por acaso.
Mas não é preciso ser especialista em Marx, Berman, Baudrillard, Debord (etc, etc) para saber disso: vivemos e sentimos toda a angústia da pós-modernidade, todas as crises que se retroalimentam para gerar mais crise, mais “desenvolvimento”, para “alterar tudo para deixar tudo como está”. É sobre a sociedade, a política, as relações de produção, de trabalho e também sobre a cultura, a música, sobre nossas escolhas, nossas fragilidades, sobre porque fazemos o que fazemos, ainda que não nos demos conta do motivo. E, muitas vezes, não é preciso ter um. Tudo tem uma existência local e limitada, é verdade, ao mesmo tempo em que tudo vai além. Uma casa que fecha, uma banda que acaba, um blog que não tem mais fôlego para seguir, um festival que dura poucas edições: cada um acaba cumprindo o seu papel, seja qual for. Cada um contribui de alguma forma, de alguma maneira, de jeitos visíveis e outros não, para aquilo que chamamos de “cena”, para algo que pode passar anos adormecido ou escamoteado, mas que vai gerar (talvez) algo lá na frente. “Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura”.
O que chamamos de “cena” nada mais é que pessoas reunidas em torno de algo, ainda que não saibam ou não se deem conta. E isto BH tem feito e proporcionado com maestria. Nem sempre com romance duradouro repleto da montanha-russa costumeira (caso dos 20 anos da Obra), mas às vezes apenas com uma foda bem dada de “uma noite” só. Até para fracassar é preciso algum talento. Para admitir a derrota e seguir adiante. Para acusar o golpe e levar o combate até o final, por nocaute ou por pontos, com o supercílio aberto, o olho inchado e sangrando e as pernas cambaleantes.
Tudo isso envolve uma certa dose de paixão irracional, de teimosia, de hábito. Da linha tênue que separa a convicção da burrice. De muitas quedas e pouco sucesso. De não se contentar com o convencional. De um senso de urgência muito refinado – ainda que não pareça – de uma maturidade curtida em suor e lúpulo. Pouco importa o quanto foi e o que ainda será. Tenho certeza que a maioria não se arrepende de nada. É para seguir tentando, construindo e fodendo, mesmo que a gente se estranhe, que deixe de se falar. É para pecar pelo excesso, não pela omissão. “O paradoxo mineiro” é o exemplo perfeito disso. Caindo aos pedaços, mas vivos e em forma.