Skip to content →

Searching For Sugar Man: dilacerante

I wonder how many plans have gone bad / I wonder how many times you had sex / I wonder do you know who’ll be next

Estou acostumado a ser estrangeiro em meu próprio país. A não me reconhecer imediatamente na paisagem, nos prédios, nos jardins artificiais, nas casas de estranhos conhecidos. There’s no place for a wasteland heart, diria uma canção de amor barata dos anos 60.

É verdade. Ela chegou pra mim nesta manhã como uma lembrança que nunca vai embora. Ou como uma surpresa na noite. É como se deparar com um crisântemo no meio do inverno. Gostaria de acalmar seus pés cansados. De fazê-la aquiecer em meus braços. De mostrar que tudo pode e deve ser melhor do que é. Eu sou só mais um cara. Um clichê decomposto.

Were you tortured by your own thirst / In those pleasures that you seek / That made you Tom the curious / That makes you James the weak?

httpv://www.youtube.com/watch?v=rYoRlL1dlNE

Lembro bem de quantas madrugadas andei a esmo pelas vielas de uma grande cidade. Quantas vezes deixei o frio cortar o meu rosto. Quantos ônibus tive que esperar. Na madrugada todos conservam uma certa irmandade. Torta, errante, tensa. Mas ali, entrementes, é como se nos reconhecessemos nas nossas próprias angústias. Se um sentimento de solidariedade fizesse mais sentido que todo o resto.

Hoje, quando passo de carro a assistir transeuntes esperando o transporte que nunca vem, sou tomado por uma certa tristeza. Uma certa vergonha. Viver trata-se de infinitas vitórias sobre a memória. Sobre o fato de que a injustiça e a desgraça são a fundação desse sistema. Afinal, não é por acaso que metade do planeta é obesa e a outra metade passa fome.

Woke up this morning with an ache in my head / I splashed on my clothes as I spilled out of bed / I opened the window to listen to the news / But all I heard was the Establishment’s Blues.

Essa culpa pequeno burguesa é cínica. Medrosa. Aqui na maquete as pessoas tem medo de tudo. Tudo que ameaça o mundo plástico e pueril em que vivem. Medo de gente. Nunca vi um povo com tanto medo de si próprio, dos outros, da cidade em que moram. Abdicar de ocupar o espaço público é entregá-lo nas mãos do vazio. E como a maquete consegue ser erma, escura e estranha quando a noite cai.

Um lustre de decadência calculada.

Gun sales are soaring, housewives find life boring / Divorce the only answer smoking causes cancer / This system’s gonna fall soon, to an angry young tune / And that’s a concrete cold fact

Encontrei um anjo ali no esgoto. E ele me disse que nada era da sua conta. Tentei acertá-lo, mas não consegui. Meu gancho passou batido. Meu direto não arrancou mais que riso. Então eu percebi que ele estava certo. Me dei conta da minha cegueira. Ou do meu delírio.

Gostava de caminhar pela praia sem me preocupar com nada. De sentir a água morna nos meus pés. A espuma se desvanecendo num fluxo e refluxo constante. Todas aquelas crianças brincando. Toda a pele branca queimando. Quase como voltar para o útero. Encontrar um lugar que te diga algo.

Cause the sweetest kiss I ever got is the one I’ve never tasted / (…) / Cause my heart’s become a crooked hotel full of rumours / But it’s I who pays the rent for these fingered-face out-of-tuners / And I make 16 solid half hour friendships every evening

Na primeira vez, não doeu tanto. Com o tempo, você se acostuma. É preciso deixar sangrar até invadir a casa toda. Pintar as paredes de vermelho, lavar o chão. Meus pulsos estão abertos e meus joelhos também. Não há estigma que eu não possa superar. Já estive aqui antes. Já ouvi esta música.

Compartilho da dor de gente como eu. Vai passar. Como sempre passa. Difícil é suturar a ferida de um diabético. Restaurar a ferrugem. Desaparecer a marca da topada no coral. Queimar toda essa gordura. A verdade é que todo castigo é pouco.

You go home but you can’t stay / Because something’s always pulling you away / Your fast hellos and quick goodbyes / You’re just a street boy / With the streetlights in your eyes / You better get yourself together / Look for something better

Esse é o poder que a música tem. O som e o silêncio. A fúria e a calmaria. Não chame de um retorno. É melhor correr. Ficar mais forte, mais ágil. Meus socos nunca mais serão desviados. Não me encontro na planitude do cerrado. Prefiro a tormenta do oceano, os espinhos da montanha. Apenas uma série de paisagens num quebra-cabeça que nunca será completo. Porque ele não foi feito para isso.

É só um abrigo no meio da guerra, mas eu não abro mão de ir para o front. Como sempre, vou te exorcizar, te dobrar, te reduzir. Te eliminar com um tiro na nuca, como um cão. Vou afogá-los no meu sangue. E vocês nunca mais conseguirão sair de lá. Eu sempre venço no final.

Cause you’ve been down on me for too long / And for too long I just put you on / Now I’m tired of lying and I’m sick of trying / Cause I’m losing who I really am / And I’m not choosing to be like them / Maybe today, yeah / I’ll slip away

(Maurício Angelo, Brasília, 19.05.13)

Comentário tradicional:

Sixto Rodriguez é o autêntico working class hero. Uma dessas histórias fantásticas que a música nos dá. Totalmente desconhecido nos Estados Unidos e ícone na África do Sul, o documentário (vencedor do Oscar em 2013) tem o mérito infinito de resgatar um compositor desse calibre para o grande público. Em crueza e em estilo, Rodriguez certamente encontra paralelo em Dylan. E sua história de vida é nada menos que espetacular.

httpv://www.youtube.com/watch?v=KKXewWDh1og

Baixe

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Cinema Destaques