Acachapante. Que o pé na bunda e as desgraças amorosas em geral são os maiores propulsores artísticos da história humana, não há dúvidas. Otto fez o melhor que podia disto: produziu seu melhor disco, um dos melhores do ano e, quiçá (há), da década no Brasil. E olha que eu nunca simpatizei muito com a carreira solo do rapaz. Achava pretensiosa, presunçosa, quase intragável. Misto de má vontade, ranço e algo que, admito, não sei explicar. De repente, a música brasileira tem muito a agradecer a Alessandra Negrini.
“Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” começa avassalador: “Crua” define o tom lancinante, ácido. Otto expurga com vontade:
Há sempre um lado que pese e um outro lado que flutua. Tua pele é crua. Dificilmente se arranca lembrança, lembrança, lembrança, lembrança…Por isso da primeira vez dói, por isso não se esqueça: dói. E ter que acreditar num caso sério e na melancolia que dizia. Mas naquela noite que eu chamei você fodia. fodia. Mas naquela noite que eu chamei você fodia de noite e de dia.
Poucas vezes você irá ouvir um disco tão…visceral quanto esse. O termo, batido, ganha outros contornos, outra vida nos becos escuros da cabeça de Otto. Um descarrego, exorcismo. Catarse de porra louquice dolorida. Porre de sentimentos. Humano. Demasiado humano. “O Leite” segue sangrando, não perdoa. E a música é ótima, inspirada, expirada, encharcada.
Samba trágico, rock (!?) com tesão, pop brasileiro sem clichês. Um Jackson Pollock musical. A única coisa que você quer fazer depois de “6 minutos” é dar play novamente. “Lágrimas Negras”, versão de um clássico de Jorge Mautner, feita ao lado de Julieta Venegas, é sintomática na sua própria escolha: Belezas são coisas acesas por dentro/Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento.
Programações safadas, arranjos vocais caprichados, instrumental burilado artesanalmente nos pilões da alma. Como comprovam “Naquela Mesa” (outra versão, de Nelson Gonçalves) e “Filha”.
Se começa cru, “Agora Sim” fecha o álbum em nítido requiem. O instrumental sibila uma marcha fúnebre caótica, um sopro de ar quente na lembrança que não se apaga.
Contra toda a injustiça que eu possa ter cometido contra Otto, “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” é o soco na cara da MPB modorrenta a que estamos acostumados. Pela dor, Otto carimba sua contribuição com um disco que, com certeza, merece toda a ovação que vier.
O leite, o sentimento, a bruta, esfera, o fim, o seco, o jeito, o medo, o beijo, o grelo, o fato raro dado, o olho
O dado, o olho tosco, o rosto, sopro, gosto ruim
O dado, o olho tosco, o rosto, solto ruim