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Bemônio e o fim da inocência carioca

Por Maurício Angelo

Antes berço (claro) do samba, da bossa nova e seus versos pueris, de vocal sussurrado e instrumental inofensivo (sem demérito) e depois do rock bobinho e irreverente (ainda que o Dorsal Atlântica, por exemplo, seja o oposto da Blitz e cia limitada), do pop oitentista de gosto duvidoso e da mpb e do rock débil dos anos 90/00 (com honrosas exceções), hoje o Rio de Janeiro tornou-se celeiro de experimentalismo das mais variadas vertentes e escolas, não raro gerando uma música soturna, quebrada, ameaçadora, pautada (também) pelo uso de instrumentos incomuns.

É o caso de Cadu Tenório (abordado recentemente aqui em sua parceria com Juçara Marçal e que tem produzido bastante), do impressionante Negro Léo (“Ilhas de Calor”, seu disco de 2014, é incrível e o novo, “Niños Heroes”, está na fila) e, para não citar todos, do foco deste texto: o trio Bemônio, formado por Paulo Caetano, Gustavo Matos e Eduardo Manso.

Claro que nenhum estado (ou cidade ou região) pode ser definido por um único estilo ou sonoridade, especialmente no Brasil, com a imensurável riqueza sonora que temos. Mas é visível que algo de diferente acontece no Rio de Janeiro: o Bemônio não facilita pra ninguém.

“Desgosto”, seu novíssimo álbum, faz jus ao rótulo de “horror soundtrack” com que eles mesmos se definem. Calcada no drone, (e recomendo essa ótima matéria de Guilherme Werneck na Folha, cheia de referências), a banda aposta no incômodo permanente em que distorções, quebras repentinas e silêncios sufocantes são comuns, gritos ancestrais se misturam com samplers e sintetizadores sorumbáticos e imprevisíveis, que formam um caldo espesso e terrível com as digressões de bateria e guitarra.

Do drone mais primal de “Esfregar o Limão Por Dentro e Por Fora” para os timbres gordos, marciais e sincopados de “Deixar de Molho” até a ambiência ampla e post-rock de “Temperar com Sal, Pimenta-do-Reino, Alho, Cebola, Cheiro Verde, Louro e Hortelã” e o noise de “Juntar o Sangue Coagulado”, a receita do Bemônio é, literalmente, um caldeirão de influências diversas, sem limitar-se a x ou y. Uma tônica, diga-se, da maior parte das bandas da atualidade, abandonando o direcionamento quase unificado e mais repetitivo do passado.

A repetição, tão cara ao drone, ao post-rock, ao atmospheric, sludge e todos os derivados, ganha novos contornos, mais variações, mais cores – ainda que, no caso do Bemônio, estas variações sejam todas de uma paleta cinzenta e propositadamente mais cinematográfica.

É sempre arbitrário falar em definição do “pulso” de uma cidade, uma época, uma cultura. Cenas se fundem e se estranham ao dissabor não só de criações artísticas como de relações interpessoais. Fato é, contudo, que o Bemônio e companhia adicionam novidade na paisagem sonora e estética do Rio de Janeiro e do Brasil, produzindo muito (um álbum por ano ou mais) e mantendo o nível. “Desgosto” é um grande disco para quem se atrever a provar.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Destaques Reviews de Cds