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Cidadão Instigado e o caldeirão setentista de “Fortaleza”

Por Maurício Angelo

Você está mais velho, mais cínico, nostálgico, com saudade de casa, fazendo tudo no seu próprio tempo, sem pressa, vendo o mundo mudar rápido demais e estranhando boa parte disso. É essa a sensação – e o espírito – que permeia “Fortaleza”, o novo disco do Cidadão Instigado seis anos após o elogiadíssimo “Uhuuu!”.

Uma das melhores bandas ao vivo do país há bastante tempo, o Cidadão, liderado por Fernando Catatau, ocupa posto único na cena. Não apenas ninguém faz a mistura que eles fazem de maneira tão competente, mas podem levar o tempo que precisam em função de todas as outras atividades de Catatau. Receita certa para entregar outro registro tão sólido e tão acima da média quanto este “Fortaleza”, a cidade de origem, fortaleza, o substantivo.

Na faixa-título, uma das melhores de todo o álbum, Catatau canta:

“Fortaleza, eu te conheço desde o dia em que nasci, foi-se o tempo de criança e tudo que eu aprendi, tão profunda é tua história que eu me refiro a ti, como quem perdeu a hora simplesmente por não ir. Das lembranças restou pouco, pouco só por resistir, procurando essa criança eu até envelheci

(…) mal sabia que um dia tudo isso ia mudar, quando eu fui para o concreto, só queria ver o mar, era tanta diferença, eu só pensava em voltar, foi voltando que eu senti o impacto real das mudanças violentas e a gente desigual, era tanta ignorância que até era normal. Meu Deus, é tão difícil te reconhecer, em Fortaleza, cidade marginal. A elite foi pros prédios e o povo sem perceber, que a Fortaleza bela ninguém mais podia ver, culpa desses governamentes que nos pisam no poder. A minha pergunta é séria e nem sei se eu sei dizer: minha Fortaleza réia, o que fizeram com você? A minha pergunta espera o que nem sei mais saber: minha Fortaleza réia eu sofro junto com você”.

Aqui temos um conto preciso do músico que sai da sua terra natal (como tantos e tantos outros) para São Paulo e quando volta para a cidade de origem, já não reconhece mais sua cidade, verticalizada e explorada pela especulação imobiliária, como em todos os lugares do país, diga-se. E sublinha-se o quanto Catatau é dos melhores letristas da sua geração.

Os momentos em que isto se evidencia são inúmeros, mas não surpreende quem acompanha a carreira dele, legítimo cronista da melhor cepa e responsável por canções como “opobredosdentesdeouro”, “Os Urubus Só Pensam em Te Comer” e “O Nada”, pra citar apenas três exemplos de discos anteriores.

“Vejo as pessoas espalhadas pelo muro, seus pés de tijolos dificultam seus impulsos, cenas feitas de silêncio e ódio” sentencia ele na espetacular “Green Card”, pesadona, meio stoner, com bateria marcial, épica e psicodélica, lembrando grupos obscuros da década de 70 como Atomic Rooster.

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Se a banda sempre foi setentista até o talo, “Fortaleza” aprofunda ainda mais as influências de Pink Floyd, Led Zeppelin, Black Sabbath, Thin Lizzy (repare na logo da capa), até coisas menos óbvias, como o já citado Atomic Rooster e também Hawkwind, Can, Grand Funk Railroad, Caravan e por aí afora.

É o disco mais pesado do grupo, de um peso sofisticado e pontual, trabalhando brilhantemente as pausas e silêncios, retomadas de bateria, baixo presente em destaque, harmonias belíssimas e todo o estilo próprio da guitarra de Catatau, que desenvolveu sua marca registrada ao longo do tempo. A ‘balada’ “Dizem Que Sou Louco Por Você” é o exemplo perfeito disso.

 Ou você pode escolher também “Besouros e Borboletas”, “Ficção Científica”, “Quando a Máscara Cai” e “Dudu Vivi Dada”, todas excelentes, fruto de uma banda madura, que se entende com maestria e no auge.

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Repito: não existe, no Brasil, ninguém nesta seara que entregue algo de um nível tão alto quanto o Cidadão Instigado é capaz de fazer. Seria precipitado rankear “Fortaleza” em comparação com os discos anteriores, fato é que ele desponta não só como o melhor do ano, mas um novo clássico instantâneo, algo que afirmo com segurança após inúmeras audições – e pouquíssimos discos brasileiros atuais despertam essa vontade.

No futuro ou agora, você escolhe, o Cidadão deve ser reconhecido por produzir obras no mínimo tão boas quanto aqueles que moldaram o rock brasileiro nos anos 70: Módulo 1000, Karma, Som Imaginário, Arnaldo Baptista, Raul Seixas, O Terço, Som Nosso de Cada Dia, Casa das Máquinas, A Barca do Sol, Ave Sangria, O Peso e demais.

Eu fico com o agora. Fernando Catatau, Dustan Gallas, Regis Damasceno, Rian Batista, Clayton Martin e Yury Kalil merecem todo o reconhecimento possível.

Baixe o disco e veja ao vivo:

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Destaques Reviews de Cds