Para alguém que participou de dezenas de discos nos últimos anos – 18 deles disponíveis para download no site oficial – é absolutamente normal um esgotamento de ideias, fórmulas, um cansaço até da própria experimentação vanguardista – das ruas ou de laboratório – com a qual Kiko Dinucci está acostumado a trabalhar. Primeiro disco oficialmente “solo”, mas com os parceiros de sempre, caso de Marcelo Cabral (baixo e teclado) e Sérgio Machado (bateria), núcleo duro que sairá em turnê, até os comparsas do “Clube da Encruza”: Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Rômulo Fróes, Thiago França, Ná Ozzetti e outros.
“Cortes Curtos” chega banhado de boas referências: tasque no caldeirão o “samba sujo, torto e feio” da guitarra de Dinucci com uma dose cavalar de proto-punk, noise, post-punk/hardcore, como MC5, Stooges, Velvet Underground, Minutemen, Talking Heads e referências nacionais óbvias (Patife Band, bem evidente em “Uma Hora da Manhã”, por exemplo), Itamar Assumpção (“O Inferno Tem Sede”, “Quem Te Come”), ares de trilha cinematográfica – seja na inspiração pro título em Robert Altman, seja na transição das faixas – com uma angústia e uma raiva urbana bem evidente de uma geração (a nossa turma dos 30-40) que taí meio puta com tudo, meio atordoada, meio sedenta, meio letárgica com tanta porrada na cara o tempo todo, com a doutrina do choque chegando pesado no micro e no macro, na época do “tudo é absurdo mas nada é chocante”, das fodas insignificantes e das relações que comportam um certo nível de cretinice esperada.
Conceitualmente, Kiko pega São Paulo pela jugular em crônicas ácidas e rápidas que refletem esse cenário todo dos anos 10, duro de engolir, que desce rasgando e queimando a garganta, apenas com breves momentos pra retomar o fôlego enquanto desvia do próximo quase atropelamento.
É o artista tomando sacode da polícia (em capa dele mesmo), é a cultura afro entranhada nas cordas que abraçam mais do que nunca o punk de um dos melhores guitarristas do país, é o jovem fã de hardcore descobrindo o samba, assumindo os vocais, dando a cara pra bater e revidando, deglutindo São Paulo, excretando um relato cru e sincero bem representado pela trinca de encerramento: “Vazio da Morte”, “Crack Para Ninar”, “A Gente se Fode Bem Pra Caramba”. É como se João Antônio empunhasse uma guitarra para falar da SP fora do óbvio, a SP do pé de página ou mesmo a SP de uma classe média mais pra lá ou pra cá que ainda não se deu conta do quão ferrada está. Que tem a vívida sensação de que as coisas irão piorar. Mas que, enquanto isso, no meio da tempestade de estrume que destrói a janela, constrói o seu charme e tem lá o seu encanto.