Dada a chuva torrencial que se abateu sobre Belo Horizonte na noite de ontem, cheguei ao Palácio das Artes a tempo apenas de ver a última música do pessoal do Monno, banda local que tem feito um bom barulho na cena com seu indie rock honesto, apesar de afetado. Divulgando o recém lançado “Agora”, não deu para se ter uma idéia melhor do grupo.
Após o intervalo, a sala João Ceschiati deu lugar aos cuiabanos do Macaco Bong, power trio instrumental respeitado em toda a cena independente brasileira, egressos do Espaço Cubo, no Mato Grosso, talvez o coletivo melhor organizado do país. Bruno Kayapy (guitarra), Ney Hugo (baixo) e Ynaiã Benthroldo (bateria) focaram-se especialmente na sua estréia em full-lenght, “Artista Igual Pedreiro”. “Shift” – sem dúvida a melhor – “Bananas For You All” e “Fuck You Lady” – trazendo um pouco de calmaria a tanta porrada, evidenciam uma banda coesa e de muito punch, mas limitada e prolixa. Por mais que se admire o trabalho do Macaco num todo (além do âmbito estritamente musical), não dá pra negar a decepção ao vivo.
Sobra energia, falta não só técnica e melhor exploração das possibilidades dos estilos que trafegam (ou alegam trafegar), como jazz, rock, fusion e mpb, como uma melhor noção de silêncio, harmonia e improvisação. É música “forte” e “intensa”, sim, com algumas composições muito boas – que conseguem até, de certa forma, justificar o nome que criaram – em meio a faixas simplórias e repetitivas.
O Macaco parece acreditar que “porrada sob porrada” é o suficiente para criar boa música instrumental. Não é. Falta pluralidade nos timbres, criatividade nos riffs e variação conceitual dos temas propostos. Quando eles se permitem ir além, o resultado é melhor. Mas ainda estão muito amarrados ao próprio umbigo, fechados dentro de um “estilo” limitado. São bons, mas podem render muito mais, não só refinando a técnica como na própria elaboração das composições – qualquer um que entenda de música instrumental e veja o Macaco ao vivo é capaz de perceber estes pontos. Talvez sejam “o” nome para um público que não está acostumado a bandas do tipo e propostas idem, criando uma adoração que não se sustenta em outras praças. O Hurtmold, aliás, apenas fazendo um gancho prévio, é o contraponto ideal para o que quero dizer. Música instrumental pesada, orientada para um formato mais simples – guitarra, baixo, bateria – não precisa ser música instrumental burra.
Hora de Mallu Magalhães. Fenômeno da internet, em um ano, onde surgiu no MySpace, tornou-se um dos nomes mais falados da cena alternativa, atingindo atualmente quase 2 milhões de acessos. Vendida como “a menina de 15 anos” – o principal comentário e referência quando alguém fala em seu nome – Mallu fez aniversário um dia antes de seu show no Eletronika. Terão que arranjar outra estratégia de marketing. Apesar das expectativas medianas – para usar um eufemismo – Mallu surpreendeu. Ao contrário da menininha tímida de composições fracas e muito mais hype do que conteúdo por trás, o que se viu foi uma garota consideravelmente madura para a idade que carrega, dona de bela voz e que é muito (mas muito) melhor ao vivo que em estúdio.
Claro que as peraltices fazem parte do repertório. Em dado momento Mallu sai correndo do palco sem aviso prévio e vai buscar algo que esqueceu no backstage, voltando com a maior naturalidade do mundo. Brinca com passos de balé durante uma passagem instrumental. Enfim, é uma menina. Mas talentosa, oferecendo algo além da simpatia e fofurice. E, não sei se isto pode ser considerado surpresa, foi quem levou mais público ao Eletronika. Platéia cheia mas comportada em demasia, talvez intimidada pelo lugar, que assistiu à uma boa apresentação de Mallu, ancorada por uma banda de apoio eficiente, arriscando até alguns solos. O único deslize, no final, com uma versão dolorosamente ruim de Johnny Cash, não chegou a comprometer. Retirado os excessos vocais a que se presta às vezes e com o natural amadurecimento que tem pela frente, Mallu dá ares de que pode ser mais do que “a carinha bonitinha da música brasileira em 2008”. Resta saber se o hype dura até lá.
Chegara a hora do Hurtmold. E se não dava para afirmar isto até hoje porque não os tinha visto ao vivo, agora não resta dúvidas: a melhor banda brasileira da atualidade. Incrível observar como evoluíram deste o primeiro álbum, com os pés ainda no hardcore, até o último, auto-intitulado, uma das melhores obras do mundo em 2007. E se anteriormente tinham estado em BH tocando no Matriz (para quem viu), ter a oportunidade de conferi-los no Grande Teatro do Palácio das Artes pode ser considerada a primeira vez. Um palco à altura do som da banda.
Post-rock, math-rock, bla bla bla, tarefa ingrata defini-los nem os próprios gostam. E com razão. Apesar de poderem ser encaixados como mais próximos de certa cena – como qualquer manifestação artística – o Hurtmold faz música, e ponto. Maurício Takara (bateria/trompete), Guilherme Granado (teclado/vibrafone/escaleta/eletrônicos), Marcos Gerez (baixo), Mário Cappi (guitarra), Fernando Cappi (guitarra) e Rogério Martins (percussão/clarinete) tem pleno domínio de seus instrumentos e, mais do que técnica, extremo talento para composições: fazem as músicas trabalharem em favor deles, em texturas e harmonias que evidenciam a riqueza de abordagens e melodias. Não brigam com elas, trazendo o conhecimento teórico e a inteligência artística para o que a forma sonora pode expressar.
E ninguém melhor para fazer uma participação especial no show que Paulo Santos, membro do Uakti, um dos maiores e mais originais nomes da música brasileira em todos os tempos. A habilidade e os instrumentos de criação própria casam perfeitamente com o som do Hurtmold, que pode ser encontrado, a grosso modo, em alguma fronteira entre o Uakti, Egberto Gismonti e Frank Zappa, sempre com muita personalidade própria.
O final, com “Deni”, consagrou o melhor show do Eletronika com a melhor banda nacional da atualidade. Pra mim o festival tinha acabado ali. Razão mais do que suficiente para ir embora e ficar com a melhor sensação possível na cabeça. Ainda teriam as apresentações de Lucy & Popsonics, que não tocaram no club Roxy no dia anterior como programado por “problemas no som”, e o Asobi Seksu, de NY, o grupo mais eletro dos que tocaram no Palácio, mistura de Belle & Sebastian, New Order, psicodelia pop e um vocal fofo.
Muito se criticou a escolha do Palácio das Artes para a realização do evento, alegando ser um ambiente formal e sisudo demais para a maioria das atrações convidadas. Verdade. Alguns shows cercaram-se de um clima um pouco estranho para o perfil de quem tocava, com o público bastante comportado. Apesar disso, a ótima localização e estrutura, somado a aquele que é, disparado, o melhor palco de Belo Horizonte em termos de som, luz, acústica, etc, acaba justificando a escolha, com muito mais pontos positivos que negativos.
O cast nacional – 95% – também foi quase irretocável, com ótima curadoria. Pra ficar perfeito, ao contrário dos anos anteriores, faltou apenas uma atração internacional de peso, ausência bastante sentida. Mesmo assim, o Eletronika continua sendo um dos festivais mais interessantes do país, abrindo espaço para nomes que normalmente não encontram espaço para tocar em terras mineiras – ou tocam em condições precárias. Necessário apenas que o público prestigie melhor um evento deste porte, dada a facilidade com que as coisas morrem por estes cantos. Em seus quase 10 anos de existência, o público mineiro ainda não faz por merecer. Que tirem os olhos do próprio quintal e comecem a enxergar a música do mundo. E que o Eletronika não sofra hiatos – como já sofreu – por causa disso. É torcer e aguardar.