Retirado o oba-oba e a passarela modernete de mau gosto (um pleonasmo, eu sei), sobrou (boa) música no segundo dia do Eletronika.
Infelizmente – muito infelizmente – não consegui assistir à apresentação de Guilherme Mendonça, o Guizado, músico paulista que lançou um dos melhores trabalhos do ano até agora, “Punx”. Instrumental de vanguarda com raro senso melódico, Guizado consegue reunir o melhor de várias pontes, como se Miles Davis cruzasse com Aphex Twin, King Crimson com Kraftwerk e por aí afora.
Melhor que tentar explicar é ouvir o que o cara tem a “dizer”. Característica, aliás, que pode ser estendida a toda música experimental. Termo abrangente que reúne um sem número de nomes dos mais variados estilos, gêneros e fusões. Construí meus ouvidos principalmente sob o progressivo dos anos 60 e 70, mergulhando no universo deste que possivelmente é um dos ramos mais completos da música, caindo depois no jazz, o rock, o pop e o eletrônico. E é justamente neste nó que se encontra boa parte de quem faz a melhor música instrumental da atualidade, seja aqui ou lá fora, com a diferença dos óbvios (e bem vindos) traços brasileiros de quem nasceu aqui.
Tal digressão resume não só a “cara” desta “cena” como também explica o que foi o segundo dia do festival. Na verdade uma confraria de amigos e músicos parceiros que se apresentaram em seqüência: Guizado, Maurício Takara, Curumin e Instituto são gente da mesma cepa. O estourado Curumim, por exemplo, toca bateria na banda de Guilherme, que é bem próximo de Takara, que assume as baquetas no coletivo Instituto, de onde B. Negão saiu para participar do show de Curumin, que também apareceu na homenagem a Tim Maia.
O único “corpo estranho” desta história, digamos, é o pexbaA. Estranhos na própria casa – não só Belo Horizonte, na qual apareceram 10 anos atrás, como mesmo na cena experimental. Os mineiros vão um pouco além, em ousadia e concepção. De assustar qualquer desavisado e também exigir muito mesmo daqueles habituados a toda “vanguarda” musical. A porra loquice pura e simples toma ares de epifania, saindo e voltando ao eixo. Seja nos vocais sempre caóticos de Rossano, tão possuído quanto natural em seu papel de dar voz ao que se vê e sente, seja na guitarra dissonante de Rodrigo Anjos – outra alusão espiritual que parece não ser gratuita.
As “letras”, sem significado ou língua definida, partem da premissa dita pelos próprios de que “o mapa do que interessa ao grupo consiste em todos os tipos de sonoridades utilizadas ou inventadas pelo homem ao redor do mundo e através dos tempos; ou os sons em que simplesmente estamos submersos. Isto é, podemos dizer que somos influenciados por tudo o que captamos entre 20 hertz e 20 kilohertz.”
Com uma polpa dessas, Takara pegou ouvintes ainda atordoados, porém prontos para as mensagens subliminares que viriam a seguir. Percussão das boas desaguando numa camada espessa de programações, instrumentos de sopro em volta de uma bateria coesa e firme. Espaço para liberar as idiossincrasias que não encontram espaço no Hurtmold.
Depois de tudo, chegava a hora de deixar os temas sombrios e complexos de lado, subir ao hall principal e desembocar na festa dub-latina-hip-rock-jazz-samba-soul do Curumin.
Um daqueles nomes que se destacam primeiro lá fora pra só depois chamarem mais atenção por aqui, Luciano Nakata Albuquerque e sua banda, Os Aipins, seriam escolhas fatais num evento que tem como tema a relação Brasil-Japão. E se “Japan Pop Show” segue forte para figurar nas listas de melhores do ano, a experiência ao vivo é ainda melhor.
De “Magrela Fever” às alfinetadas de “Caixa Preta”, com a participação marcante de BNegão, Curumin mostrou cores diversas, tudo dentro de um swing inegavelmente nacional. “Kyoto” toca na mais-atual-do-que-nunca questão ambiental e é tão boa quanto a panfletária “Mal Estar Card”. Logo no início do show o músico brinca: “E ae BH, cadê a BH que não veio? Pô Beeaagáaa, mas tá legal, tá legal”. O arroubo de sinceridade é coisa rara de se ver em shows, onde sobram agradecimentos para patrocinadores e aquela chapa branca de sempre. Mas Curumin não é bobo. Reclama do público mas, ele também, porque não?, agradece à rádio que “tocou a música pra caramba, valeu aí” – referindo-se à “Compacto”. É justo. O cara é espontâneo, solto, se diverte no palco. Faz o seu melhor, brinca com a platéia e entrega um som gorduroso – no melhor sentido possível – encerrando com um sambinha uma apresentação que deixa aquele gosto de que poderia durar mais. Bom sinal.
A casa tava pronta. E a nave aterrissou. Assim o Instituto, nome que abriga alguns dos melhores nomes da música black brasileira, entrou no Grande Teatro armando a festa que se esperava, com a energia típica dos discos de Tim. De Carlos Dafé, parceiro histórico do síndico, a Cidadão Instigado e Negra Li (travando uma luta ferrenha entre a voz e as pernas, para ver quem mais se destacava), a noite foi uma festa só, como diriam os mineiros.
Os volumes 1 e 2 da obra Racional, de Tim Maia, malditos e renegados durante muito tempo pelo próprio, acabaram se tornando clássicos da MPB. Se em disco o fanatismo atrapalha bastante a audição, chegando a irritar pelo “vamos cantar a lavagem cerebral”, sendo um dos casos onde a pregação ultrapassou os limites do aceitável, tornando-se quase como o registro de um culto da seita em vinil, ao vivo os excessos são retirados e fica só a (ótima) música de Tim.
Tudo conspira a favor: os cds 1 e 2 foram relançados recentemente, a biografia escrita por Nelson Motta está nas bancas, um volume 3 com gravações inéditas vazou na internet, em 2008 completa-se 10 anos da morte do músico e a turnê-homenagem já está azeitada, vindo de apresentações disputadas durante todo o ano passado.
Banda entrosada, empolgação lá em cima e clássico em cima de clássico: “Energia Racional”,“Bom Senso”, “Contato”, “”Guiné Bissau Moçambique e Angola”, “You Don’t Know What I Know”, “Imunização Racional (Que Beleza)” e “Ela Partiu”, pra fechar. Difícil imaginar quem não saiu de lá com um sorriso estampado no rosto.
“Histórico” é a palavra mais óbvia usada para definir o show do Instituto. Pouco mais de uma hora após o início da viagem, não dá pra negar. Sorte de quem viu, sorte de quem poderá ver.
Hoje o Eletronika encerra com Mallu Magalhães tentando evitar o constrangimento entre shows de Macaco Bong, Hurtmold e os internacionais do Asobi Seksu.
Deixa de preguiça e ouve aí: