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Jorge Rocha e a literatura tarja preta em “Tem Uma Nuvem Que Nunca Sai Do Lugar”

Por Maurício Angelo

Jorge Rocha, fluminense (e não carioca, como ele gosta de corrigir), jornalista e escritor (não sei qual ordem seria mais apropriada, tampouco me parece mais um caso clássico), professor (que adora o cheiro de cérebros queimando pela manhã), chega ao terceiro livro com “Tem Uma Nuvem Que Nunca Sai do Lugar”, já lançado oficialmente em Campos (RJ), sua cidade natal, Belo Horizonte (MG), onde reside e no Rio de Janeiro.

A literatura “tarja preta”, como já foi definida a escrita de Jorge, tem mais de angústia e desesperança triturada em botas sujas das grandes cidades que desse “mal estar moderno” da civilização, esse chiste besta que transforma qualquer dor em doença. Uma coisa é certa: você não sai ileso de “Tem Uma Nuvem Que Nunca Sai do Lugar”. São vários ganchos no queixo, um cruzado de esquerda que, se não nocauteia, te deixa zonzo um bom tempo, te fazendo perguntar como você foi parar ali.

Mais que arquétipos de paisagens “atormentadas”, Jorge deixa as vísceras expostas para não aliviar em momento algum. Algumas escoriações são necessárias para te deixar vivo. Na entrevista a seguir, Jorge Rocha conta um pouco do “processo de criação” do livro e também fala sobre essa tal geração brasileira de escritores do século XXI. De bônus, o conto “Três Ratos Cegos em Copo de Whiskey”.

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Movin’ Up – O que “Tem Uma Nuvem Que Nunca Sai do Lugar” representa pra você considerando todas as experiências vividas desde o último lançamento pra cá? Há uma “verve” comum aos textos?

Jorge Rocha – Além de ser meu primeiro impresso, é também o único autobiográfico que já escrevi. Sempre fui bastante avesso à ideia de produzir literatura autorreferente, embora conheça quem faça isso com maestria – esses eu aplaudo, é claro. Há quem se borre todo ao enveredar por essa forma de narrar e desses é melhor nem lembrar. Aliás, memória é o ponto em comum entre todos os contos do “Nuvem”. Memória como salvação e expiação pela escrita. Esse livro é sobre um momento conturbado da minha vida , embora essa nuance não esteja ali de forma direta. Eu precisava escrever sobre isso para poder continuar andando.

Movin’ Up – Como você relacionaria o livro com seus dois lançamentos anteriores, “Murder Ballads” e “Usina Elevatória de Traição”? Sobretudo, o que te interessa enquanto escritor?

Jorge Rocha – Murder Ballads foi uma grata encomenda feita pela MojoBooks, do Ricardo Giasetti e Danilo Corci, onde eu pude recriar, ao meu modo, a atmosfera do disco homônimo de Nick Cave and the Bad Seeds. Não utilizei os mesmo personagens cantados pelo Nick Cave, mas segui uma narrativa paralela àquelas que foram traçadas nesse álbum. É um livro para ser lido de forma não-linear, principalmente porque foi costurado com várias e várias referências. Aliás, eu sempre me pautei por escrever dessa forma. “Usina”, também publicado como ebook pela Mojo, foi a realização de uma ideia bem antiga, criada lá pelo final dos anos 90. Ali estão contos sobre o que há de mais mesquinho no ser humano. São narrativas onde não se vê a menor possibilidade de redenção. O que me interessa como escritor é entender como funciona aquilo que Tom Waits canta em uma parte do filme Down by Law: “it´s a sad and beautiful world”.

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Movin’ Up – Seus contos não costumam seguir uma estrutura padrão e fogem do lugar comum. Pra quem não te conhece, quais seriam suas principais influências, na literatura ou fora dela?

Jorge Rocha – O que eu escrevo já foi chamado de literatura tarja preta – e nem sei se isso foi ou não um elogio. Também já fui, juntamente com os escritores João Filho e Jorge Cardoso, uma das pontas do tridente, no começo dos anos 2000, época em que eu fazia parte do site literário Paralelos. Listar influências sempre é difícil e acaba sendo mais uma traição do que exaltação, não é? Mas posso dizer que meu pai literário é Giorgio Manganelli, cuja obra me foi apresentada por um sujeito que entende muito de literatura, mas preferi ficar quieto em seu canto: Stenio Machado. Há muito de Manganelli nas “fábulas” de “Nuvem”. Tenho também um verdadeiro fascínio pelos textos do português Miguel Esteves Cardoso. Aqui no Brasil tem uns caras que não me canso de ler, como os dois escritores já citados ali em cima, além de Mário Bortolotto, Marcelo Mirisola, Tadeu Sarmento, Paulo Scott e Marcelo Montenegro. E escrevo quase sempre ouvindo música. Volta e meia cito trechos de músicas em meus contos, quando não coloco um músico em específico se intrometendo na narrativa. E ainda nesse caldeirão, há citações de obscuros episódios de desenhos animados e tomos de alquimia e necromancia. E whiskey.

Movin’ Up – A atual geração de escritores brasileiros parece muito cheia de si, autoindulgente, presa em suas próprias referências, tramas e na repetição de esquemas e ideias. Você concorda com isso? Que análise você faz dessa geração? Quem você recomendaria?

Jorge Rocha – Ahhh. Isso me lembra os livros sobre as gerações 90 e 00. Eu chamei essa “Geração 00” de “Quixotão 00” e muita gente torceu o nariz pra mim por causa disso. Normal. Deve ter passado com o tempo. Eu acompanhei esse estouro da “nova literatura” do começo dos anos 2000, tanto como jornalista quanto escritor, e chegou um determinado momento em que me cansei desse mundinho, justamente porque antevi/vi esses pontos que você citou. E quando me canso de algo, eu simplesmente me afasto. Mas não consegui deixar a Literatura totalmente de lado, até porque eu creio nela como salvação. Não acho que essa “geração” tenha algum sentido e não consigo ver veracidade em muitos dos escritores atualmente incensados, mais pela mídia do que pelo público. Quanto à recomendação, não tenho nenhuma a fazer. Que se fodam todos (risos). Gosto muito do que escreve o Carlos de Brito e Mello, embora seja um estilo bem diferente daquele ao qual me acostumei a ler. Converso bastante com ele sobre Literatura e isso, de certa forma, é um alívio pra mim.

Movin’ Up – Alguma chance da literatura fugir do seu nicho fechado de poucos interessados e muito confete em cima da própria cabeça? Porque a maioria dos escritores parece tão alheia ao que acontece especialmente nos grandes centros urbanos?  

Jorge Rocha – Tenho pensado na resposta para essas perguntas desde 2001. Desde essa época, não vi muita diferença nesse cenário. Posso estar sendo reducionista agora, mas acho que, nesse caso, se há circo e espetáculo – no lugar de Literatura –, é porque existe quem esteja disposto a pagar, de bom grado, o preço.

 

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Três Ratos Cegos em Copo de Whiskey

A vista a partir da varanda do apartamento mesmeriza à noite. Luzes, fumaça e imensidão girando em espiral até sumir do meu ângulo de visão: ícone de buraco negro para garantir distância segura de observação. Perdi a conta de quantas vezes parei para olhar essa paisagem, até perceber que era meu abismo particular. Refletido e olhando para mim. O sono da razão produz pontos cardeais – nunca neguei que meus monstros têm a ver com desorientação. Voltar às ruas e não ser mais o mesmo: meu cinturão de ouro. Perto da rodoviária, um canto evangélico desafinado me diz que eu deveria dar graças por alguém ter sido crucificado em meu lugar. Não sei lidar com esse tipo de redenção, mas sei para onde devo olhar. No segundo andar de um motel – cabines eróticas nas áreas térreas, como em todas as cidades: algo fixo em um mundo tão inconstante –, há uma puta vestida de amarelo que abre uma janela e observa atentamente a pregação. Nossos olhos – os meus, da puta e do pretenso pastor – não se encontram e nem precisam. Me deixei, por vontade própria, ser puxado pelo horizonte de eventos – becos, mocós e mafuás de mim mesmo –, desconsiderando que era uma região a partir da qual não se pode mais voltar. Andei sem sombra, sendo identificado a olho nu apenas pela minha interação com a matéria das vizinhanças. Eu não queria e não conseguia evitar: cheio de fome dentro da barriga da baleia. Não desdenho, apenas contabilizo minhas cicatrizes. De volta a olhar a paisagem que já cartografei abaixo das aparências, tento encontrar um porque para explicar essa obsessão. Um morcego voa rasante próximo à minha cabeça e eu, ancorado como estou, lembro que toda luz é absorvida por um buraco negro. Bem como ensina a Teoria Geral da Relatividade e a proximidade do abismo: quem escapa impune? O que restou, esse Houdini da tração gravitacional de estrelas apagadas, está longe de ser meu doppelganger. Finalmente: dei um passo para dentro do vórtex ao qual pertenço. Tenho mais de 2 milhões de massas solares.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Entrevistas