Em tempos de “50 Tons de Cinza”, pastiche novelesco da pior categoria calcado em “sadomasoquismo”, é um alívio ter este clássico de Guido Crepax (1933-2003) relançado no Brasil. “A História de O”, baseado em livro da francesa Pauline Réage, ganhou edição brasileira pela própria LP&M em 1988 e foi lançado originalmente em 1975.
O traço sinuoso de Crepax, que também era arquiteto e ficou conhecido especialmente por personagens femininas como Valentina, Emanuelle, Justine e outras, é, naturalmente, o destaque absoluto de “A História de O”. Mestre dos quadrinhos eróticos, Crepax é expoente do que já podemos considerar uma tradição italiana, que envolve nomes em áreas diversas como Milo Manara, também nos quadrinhos, Tinto Brass, no cinema, o Salò de Pasolini e assim em diante.
No prefácio do relançamento, o crítico italiano Marco Giovannini traça uma ótima análise da história, do estilo, dos trunfos e das fraquezas de Crepax. O artista, que começou fazendo capas de jazz e ilustrações em livros de Poe e outros, ocupou rápido destaque nas revistas italianas para adultos que explodiram nos anos 60. Contextualiza Marco:
Em abril de 1965, nasceu em Milão Linus, a primeira revista em quadrinhos para adultos, dirigida por três grandes intelectuais italianos – Vittorini, Eco e Del Buono. No primeiro número, o arquiteto da Milão elegante, autor de projetos muito sofisticados, também surgia como grande desenhista em quadrinhos: era a estreia oficial do verdadeiro e definitivo Crepax. O desenho surpreendia por ser absolutamente inédito e revolucionário.
A página era decomposta de mil maneiras, havia cortes cinematográficos, alto-contrastes, closes em detalhes, hiper-realismo nos ambientes e nos personagens, todos da Milão da época. Em grande parte foi graças a Crepax que a história em quadrinhos passou a ser considerada na Europa como a “nona arte”. As histórias de Crepax, na verdade, têm vários níveis de leitura. Um crítico bissexto de quadrinhos, o diretor de cinema Alain Resnais, afirmou: “Seguidamente, é necessário tomar uma página de Crepax e ler várias vezes para captar certos detalhes”.
Lendo “A História de O”, percebe-se que o texto é óbvio, preliminar, a história, apesar de ir a certos níveis e levar a quase extremo a premissa – submissão, dominação, BDSM em geral, etc – não é de causar espanto, digamos. E, óbvio, tampouco é preciso congregar das práticas retratadas na HQ para apreciar o traço de Crepax, noir, detalhista, recheado de referências históricas e das conhecidas influências do artista.
Concorda Giovannini:
O primeiro nível de leitura, o mais simples, é aquele tradicional da leitura dos quadrinhos. A vinheta, o diálogo, o balão, o rumor. E assim por diante. Até completar a história. É o mais simples e, é que se diga, o menos interessante em Crepax: ele, de fato, como narrador puro e simples, como criador de histórias de aventuras, não é o melhor autor de quadrinhos italiano, e nem está entre os melhores. Existe um abismo entre os desenhos, sempre impecáveis, perfeitos, minuciosos, e os nexos, as relações, os movimentos da história que, venturosamente” falando, são simples demais ou, até mesmo, inexistentes. O segundo nível de leitura em Crepax, seguindo o conselho de Resnais, revela sutilezas saborosas e chega a ser uma “história dentro da história”: o penteado Vergottini, as botas que há dez anos eram de Courrèges e hoje são de Santini e Domicini, as poltronas de Thonet, a escrivaninha de Van de Velde, a lombada dos livros existentes nas estantes que trazem impressos Marx, Trotski, Freud, Poe.
Independente desses detalhes, “A História de O” é um deleite para os fãs da “nona arte”, uma das obras principais de Crepax que, há muito, estava esgotada no Brasil.